Introdução
O
presente texto analisa um exemplo do uso da propaganda de guerra para encorajar
a disposição ao sacrifício pela nação entre a população japonesa durante o
período imperial [1868-1945], mais especificamente nos dias da Segunda Guerra
Mundial [1939-1945].
Para isso
será conduzido um estudo através de uma das obras do consagrado cineasta
Mizoguchi Kenji, que empregou seus talentos para a disseminação das doutrinas
do governo imperial ao longo de seus conflitos na década de 1930 e 1940,
compondo assim não apenas a análise de um dos trabalhos deste artista em prol
do esforço de guerra nipônico, como também um estudo de caso sobre o uso do
cinema como veículo de propaganda no Japão do período.
Dessa
forma, na comunicação aqui proposta, faremos a abordagem da obra “Genroku
Chushingura” [no Brasil distribuído com o título “A Vingança dos 47 Ronins”],
filme de direção de Mizoguchi, lançado nos cinemas japoneses em duas partes,
nos anos de 1941 e 1942, sendo este uma versão moderna da famosa história dos
47 ronins, e preenchido pela ideologia militarista pregada e propagada pelo
governo japonês da época.
O
trabalho com essa fonte será feito sob a luz dos conceitos de propaganda,
ideologia e necropolítica, segundo as definições apresentadas por Garth Jowett
e Victoria O’Donnel para o primeiro, Terry Eagleton para o segundo e Achille
Mbembe para o último.
Propaganda e
Necropolítica no Japão Imperial
O
período do Japão Imperial, se estendeu da Era Meiji [1868-1912], ao fim da
Segunda Guerra Mundial [1945], começando após a queda do governo do último
Xogum, e a restauração do poder do Imperador [Restauração Meiji].
Em
seus primeiros anos, o governo Meiji adotou uma linha de liberalização e
ocidentalização da cultura japonesa, e em meados da década de 1880 passou a
adotar uma posição mais conservadora e tradicionalista, considerando que isso
atrairia maior respeito para o país no cenário internacional.
Uma
das medidas da abordagem conservadora da cultura foi promover o que Harumi Befu
[1985, p. 52] chamou de “samuraização” da população, com o incentivo e
inculcação dos valores [em uma versão idealizada] do extinto estamento social
dos samurais entre todo o povo japonês, valendo-se para isso do sistema
educacional e de publicações oficiais e extraoficiais.
Com
isso o próprio modelo familiar reconhecido no país passou a ser baseado nas
antigas famílias samurais, e este entendimento da família se tornou a base para
a interpretação da natureza do Estado, na forma do Kazoku Kokka, o
“Estado-Família”, que tinha o Imperador como patriarca ao qual todos deviam
lealdade e obediência absolutas [Smith, 1997, p. 62].
Segundo John Dower [1986, p. 279],
estabelecimento desse Estado-Família explora “a mais benigna de todas as
metáforas da desigualdade: a família”, servindo para que o governo imperial
adentrasse todos os lares da nação.
Foi
para promover estes alinhamentos culturais que a propaganda do governo imperial
se desenvolveu. Primeiro buscando ampliar a aceitação de ideias e práticas
ocidentais por parte da população, e juntamente com isso promovendo a imagem do
Imperador [Cull, Culbert, Welch, 2003, p. 202], uma figura antes pouco
conhecida pelas massas populares [Fujitani, 1996, p. 7], mas que naquela nova
era se tornara o repositório da soberania do país, e deveria, portanto, ser
também visto como um símbolo central da identidade do povo desse novo
Estado-nação.
Essa
propaganda foi inicialmente feita de forma espontânea, sem a iniciativa do
governo, embora em prol deste, movida por seus simpatizantes, através dos novos
meios de comunicação de massas, como jornais e revistas, e, posteriormente, o
Estado passa a atuar diretamente, utilizando o teatro, os professores, o clero
xintoísta e budista, e a própria figura do Imperador [em várias viagens pelo país
e na constante exposição de sua imagem], como agentes propagadores da
modernização [Cull, Culbert, Welch, 2003, p. 202]. O entendimento que os
intelectuais e burocratas que trabalharam nessa área tinham, era de que
estariam educando a população através dos modernos meios de comunicação
[Kushner, 2007, p. 8].
A
partir das décadas de 1890 e 1900, com a Primeira Guerra Sino-Japonesa
[1894-1895] e a Guerra Russo-Japonesa [1904-1905], surgiu a moderna propaganda
de guerra japonesa, sendo também feita espontaneamente através da mídia no
conflito com os chineses, e movida [direcionada e censurada] pelo governo
durante o combate com os russos [Cull, Culbert, Welch, 2003, p. 202]. Com essa
propaganda o governo imperial passou a empregar a ideia de bushido ao cenário
efetivamente militar, inclusive com o encorajamento ao sacrifício pelo país
[Benesch, 2014, p. 81-82].
Com
a Primeira Guerra Mundial [1914-1918], a propaganda bélica do governo imperial
ganharia os contornos que teria até 1945, com a captação do apoio das massas
populares a participação japonesa nesse conflito através da análise e
mimetização dos métodos europeus, sobretudo britânicos e alemães. Assim, na
década de 1930, o governo japonês tinha a sua disposição uma grande e moderna
máquina de propaganda [Cull, Culbert, Welch, 2003, p. 202-203], que, no entanto,
era descentralizada e variada, sendo composta e compartilhada por agências
diferentes, dissonantes, e muitas vezes rivais em seus conteúdos e objetivos
específicos [Kushner, 2007, p. 10].
Dentro
do arsenal propagandístico do governo imperial estava o cinema, que segundo
John Dower [1993, p. 41-50], durante o período que a historiografia japonesa
chama de “Guerra dos Quinze Anos” [1931-1945], se concentrou em encorajar a
população no combate a cinco inimigos: 1) os inimigos mortais do momento,
apresentados de maneira amorfa, para simbolizar a natureza transitória dos
conflitos, ou seja, a mudança dos oponentes com o passar do tempo, 2) os
inimigos que podem ser convertidos em aliados (como os outros asiáticos), 3) os
valores e costumes estrangeiros, que seriam uma ameaça à nação japonesa, 4) os
inimigos internos em cada um (como ideologias contrárias ao governo imperial e
mesmo os sentimentos que desviam os súditos de seu dever) e 5) a própria
guerra, tratada como uma fatalidade do destino, assim como um desastre natural,
e que precisa ser vencida e encerrada.
Apesar
dos propagandistas do Japão Imperial entenderem que estariam educando sua
população, o entendimento do conceito de “propaganda”, com o qual aqui
trabalhamos o difere do de “educação”, que buscaria transmitir conhecimentos e
habilidades com objetivos flexíveis [Kushner, 2007, p. 4], enquanto a
“propaganda” é mais especificamente uma tentativa de “moldar percepções,
manipular cognições, e direcionar o comportamento para atingir uma resposta que
promove a intenção desejada pelo propagandista” [Jowett, O’Donnell, 2015, p.
181].
Em resumo, a propaganda busca difundir
ideologia, sendo que por este conceito, no contexto do Japão Imperial,
entendemos “[...] uma forma de legitimar o poder [...], promovendo crenças e
valores compatíveis com ele; naturalizando e universalizando tais crenças”
[Eagleton, 1997, p. 19].
Com
os conflitos iniciados a partir da década de 1930 [invasão da Manchúria,
Segunda Guerra Sino-Japonesa e Guerra do Pacífico], o encorajamento ao
sacrifício na propaganda é retomado, assim como as tendências necropolíticas
gerais do governo imperial vão se exacerbando, sobretudo à medida que as
dificuldades nos campos de batalha vão se acumulando, e a derrota do império se
aproxima.
Essa
necropolítica, que segundo Achille Mbembe segue o impulso moderno de subordinar
tudo a vontade de poder e a razão [Mbembe, 2018, p. 20], inclusive levando ao
sacrifício deliberado de vidas pelo interesse do Estado, se manifestou nos anos
finais do Japão Imperial de uma maneira que nada deve ao que ocorreu na
Alemanha Nazista, que para este autor é o mais acabado modelo do Estado
necropolítico; racista, assassino e suicida, operando a fusão total da guerra e
da política [Mbembe, 2018, p. 19]. Foi precisamente isso que o Estado imperial
japonês promoveu, sobretudo em seus quinze últimos anos, com sua propaganda que
pregava insistentemente a disposição ao sacrifício pela nação e o Imperador, e
a presença nesse período de elementos como a Unidade 731, as “cargas banzai”,
missões kamikaze e os incontáveis suicídios que se seguiram as derrotas das
forças armadas do Império.
É
como uma peça dessa propaganda necropolítica que o filme “Genroku Chushingura”
de Mizoguchi foi concebido.
Os 47 Ronins e
Mizoguchi Kenji
A história dos 47 ronins se tornou o mais
emblemático dos exemplos do ideal de lealdade celebrados pela cultura japonesa,
se tornando o modelo central de comportamento para os súditos, segundo os
preceitos do bushido. É uma história, que embora já tenha começado a ser
celebrada ainda nos dias dos Tokugawa, ao longo da modernidade se tornou algo
com que os japoneses desde a infância são familiarizados, e uma das bases
essenciais de sua identidade nacional, estando presente no ensino e nas mais
variadas mídias, tanto no período imperial quanto nos anos posteriores.
Este episódio se iniciou no ano de 1701,
quando o senhor do domínio de Ako, Asano Naganori [1667-1701], ao ser insultado
na residência do Xogum pelo Lorde Kira Yoshinaka [1641-1703], enquanto ambos
trabalhavam em uma recepção para enviados imperiais, feriu este com um golpe de
espada, sendo depois punido com o confisco das propriedades de sua família, e a
condenação ao suicídio ritual, por empregar
violência desautorizada naquele ambiente.
Em reação a este fato, 47 dos vassalos de
Asano [que se tornaram ronins,
ou seja, samurais sem mestre], em 1703, atacaram a residência de Kira e tiraram
sua vida, vingando assim a morte de seu senhor. Ao término da vingança, os ronins se entregaram às autoridades,
não sendo tratados como criminosos, mas como samurais que cumpriram o papel
deles esperado, demonstrando a lealdade que tinham a seu senhor [Benesch, 2014, p.
22-27].
Embora, legalmente tivessem de fato cometido
um crime, dado que no período, o Xogunato Tokugawa buscava transformar o
monopólio da violência legítima que era tradicionalmente garantido ao estamento
samurai em um monopólio do Estado, tornando as vinganças pessoais dentro deste
grupo social [kenka] restritas, e não mais livres como foram anteriormente
[Ikegami, 1997, p. 197, 202].
Ao final, o Xogunato não perdoou os ronins,
mas também não os executou como criminosos comuns, reconhecendo seu mérito
moral, e dando a eles a oportunidade de uma morte honrada por seppuku, o
suicídio ritual dos samurais [Buruma, 1984, p. 154].
Este episódio foi muito bem recebido pela
opinião pública da época, e os 47 ronins rapidamente se tornaram heróis
populares, e já em 1706 a história foi adaptada para o teatro por Chikamatsu
Monzaemon [1653-1725], com o título de “Goban Taiheiki” [“Crônica da Grande
Paz, Interpretada em um Tabuleiro”], sendo esta peça ambientada em outra época
e os nomes dos personagens mudados, para safar-se da censura do Xogunato. Esse
método foi acompanhado por várias outras peças que se seguiram quase
anualmente, dentre as quais a mais notável foi a de Takeda Izumo [1691-1756],
de 1748, intitulada “Kanadehon Chushingura” [“O Tesouro dos Vassalos Leais”]
[Buruma, 1984, p. 154-155]. As peças assim se mantiveram até a Era Meiji,
quando passaram a poder se basear no evento histórico e nos nomes reais de seus
personagens. Nos últimos anos do Japão Imperial, a versão teatral mais famosa
dessa história foi a dirigida
por Mayama Seika [1878-1948], apresentada com grande sucesso entre 1934 e 1941
[Leiter, 2006, p. 59, 231]. Esse fato histórico foi a base do filme
dirigido por Mizoguchi Kenji [1898-1956], que foi aos cinemas japoneses entre
1941 e 1942.
Mizoguchi estreou como diretor em 1922, tento
como característica distintiva de sua obra a abordagem da vida familiar japonesa,
em histórias vistas principalmente sob o ponto de vista feminino [Sharp, 2011,
p. 170], tanto que o público japonês o considerava um diretor “feminista”, não
no sentido ocidental do termo, mas como alguém que simpatiza genuinamente com
as mulheres, sendo realmente capaz de entender a ótica feminina da sociedade
[Richie, 2005, p. 78].
Embora tivesse simpatias pelo marxismo antes
da ascensão da extrema-direita ao poder , isso não o impediu de trabalhar para
a propaganda imperial durante as décadas de 1930 e 1940, e um de seus
principais colaboradores, o romancista e roteirista Kawaguchi Matsutaro
[1899-1985] [1964, p. 7], afirma que, quando os comunistas começaram a ser
perseguidos na década de 1930, ele rapidamente se virou para a extrema-direita,
e após a rendição do Japão em 1945, com a mesma facilidade se tornou um
defensor da democracia liberal pregada pela ocupação estadunidense.
Entre as censuras e perseguições da década de
1930, inclusive com atritos entre Mizoguchi e a censura do Estado, a produção
de dramas, como os dirigidos por este diretor, foi restrita, por serem
considerados retratos inapropriados da família e sociedade [Spicer, 2019, p.
140].
Dessa forma, para evitar a falência, o
Estúdio Shochiku, onde Mizoguchi trabalhava, precisou aceitar a produção de
filmes que servissem à propaganda do Estado, e foi assim que Mizoguchi Kenji se
tornou um dos propagandistas do governo imperial [Spicer, 2019, p. 140], se
juntando a outros cineastas na mesma situação, algo que pode ser inclusive percebido
pela presença de ideias esquerdistas em alguns filmes, e que escapavam da
censura pela qualidade das obras e o renome de seus realizadores [Dower, 1993,
p. 38], e também, provavelmente, pela descentralização do sistema de
propaganda, que impossibilitava regras totalmente claras e uma fiscalização
mais efetiva.
Com isso, Mizoguchi dirigiu os filmes “Manmo Kenkoku no Reimei” [“O Amanhacer da
Fundação da Manchúria, 1932], “Roei no uta” [Canção do Campo, 1938], “Genroku Chushingura” [“O Tesouro dos
Vassalos Leais da Era Genroku”, 1941-1942], “Danjuro Sandai” [“Três Gerações da
Família Danjuro”, 1944], “Miyamoto
Musashi” [1944], “Meito Bijomaru” [A Famosa Espada Bijomaru, 1945] e
“Hisshoka” [“Canção da Vitória”, 1945] [Sharp, 2011, p. 171-172, 386].
Estes
filmes tinham como temas centrais o louvor ao imperialismo japonês e a apologia
da lealdade dos indivíduos e das famílias ao governo imperial, seguindo os
valores do bushido [Sharp, 2011,
p. 171-172], sendo este segundo tema o conteúdo ideológico da obra “Genroku Chushingura”, que
abordaremos no próximo tópico.
Genroku Chushingura
O
filme “Genroku Chushingura” foi uma adaptação cinematográfica da peça teatral
homônima dirigida por Mayama Seika entre 1934 e 1941 [Richie, 2005, p. 278].
A
trama do filme tem como base a história já descrita anteriormente,
concentrando-se, na primeira parte, no suspense em torno do confisco das
propriedades do falecido Lorde Asano, enquanto seus vassalos buscavam apelar à
justiça do Xogunato para reverter essa pena, e permitir que fossem repassadas
ao irmão de seu senhor, Asano Daigaku [1670-1734].
Enquanto
isso o conselheiro de Asano, e líder de seus vassalos, Oishi Kuranosuke
[1659-1703] é pressionado por seus colegas a liderar um ataque contra o Lorde
Kira e também por alguns a fazer frente às tropas do Xogunato, no caso de
confisco do Domínio de Ako. No entanto, Oishi parece se desviar de suas
responsabilidades, se embriagando, frequentando prostíbulos e se afastando de
seus companheiros, algo que era, no entanto, uma mera encenação.
Na segunda parte do filme Oishi continua com
sua encenação, sendo inclusive repreendido por isso pela esposa de seu falecido
senhor, que acredita que ele se furtou de sua lealdade. Porém, após os ronins
receberem a notícia de que o Xogunato não aprovou a restituição das
propriedades da família Asano, Oishi finalmente os lidera em sua vingança. Ao
fim todos se sacrificam por seppuku, sob a aprovação da opinião pública e
preservação de sua honra.
Analisando mais especificamente o conteúdo
ideológico deste filme, nos concentraremos aqui em três aspectos: o foco da
narrativa nas famílias dos personagens principais, o louvor ao sacrifício pelo bushido, e também a presença
do Imperador na história.
Sobre o primeiro ponto, é notável a presença
de familiares dos protagonistas na trama do filme, mais especificamente
mulheres, demonstrando compreensão do dever da vingança de seu falecido senhor
que pesa sobre os homens de suas famílias, e a disposição a lidar com suas
consequências, mesmo a morte, e tanto apoio quanto aconselhamento no
cumprimento dessa tarefa. As personagens principais nessa abordagem são
Yosenin, a esposa do falecido Lorde Asano, além de Kiyo e Omino respectivamente
a irmã e a noiva de dois dos ronins Tominomori Sukeemon e Isogai Jurozaemon.
A participação destas mulheres na história é
de aceitação dos deveres, mas não de passividade, já que questionam os ronins
em suas decisões erradas e atuam para
impedi-los de cometer equívocos, como Kiyo, que tenta impedir seu irmão, um
mensageiro do domínio de Ako, de assassinar Kira enquanto este estava em visita
ao castelo de Tokugawa Tsunatoyo [1662-1712], senhor do domínio de Kofu, pois
com tal ato ele privaria seus companheiros do cumprimento de seu dever,
enquanto a esposa do falecido Lorde Asano, que aceita o destino que seu marido
precisou enfrentar em defesa de sua honra,
encoraja Oishi a liderar os ronins de Ako na vingança contra Kira. Por
sua vez, a noiva de Isogai, protagoniza um suicídio como prova de lealdade a
seu par e compreensão de seu dever ao final do filme.
A opção por tal presença feminina na história
não apenas é condizente com o histórico cinematográfico de Mizoguchi, como
também direciona a ideologia do governo imperial, e sua necropolítica, para o
interior das famílias japonesas, demonstrando como estas deveriam se portar
diante das exigências que o bushido fazia a seus membros diretamente envolvidos
na guerra, como soldados e profissionais de apoio.
O segundo aspecto do filme que aqui
abordaremos é sua apologia ao sacrifício segundo os ditames do bushido, sendo
feita não apenas pela dignidade com a qual a vingança dos ronins é investida ao
longo da narrativa, na verdade, um traço comum as variadas versões dessa
história, mas especialmente em duas cenas, o seppuku do Lorde Asano no começo
da história, e o suicídio de Omino, a noiva de Isogai, ao final da história.
A cena do suicídio ritual de Asano Naganori é
ornamentada com a simbologia do sacrifício do samurai que foi propagada pelo
governo imperial desde a Era Meiji, com a presença de uma cerejeira em flor no
jardim em que o haraquiri era realizado. A flor de cerejeira, com sua magnífica
beleza e sua brevidade de vida, foi tornada já no século XIX um símbolo para o
espírito samurai, e na década de 1930 de sacrifício pelo Imperador
[Ohnuki-Tierney, 2002, p. 102-109].
No desenrolar do filme, após os ronins terem
executado sua vingança, e se prepararem para a morte por seppuku, Omino, noiva
de um dos ronins, vai até ele para além de sanar dúvidas, deixar claro que ela
compreende a necessidade deste de deixa-la para cumprir seu dever maior, e ao
final, suicida-se antes de seu noivo, para não deixar dúvidas sobre sua
sinceridade sobre este ponto. É o único suicídio mostrado em maior detalhe ao
final do filme [os dos ronins são anunciados, mas não exibidos em cena], um
protagonismo que não apenas confirma a predileção de Mizoguchi em seus filmes,
como também serve de exemplo para as mulheres espectadoras da obra, mostrando o
limite da disposição que os familiares devem ter pelo cumprimento do bushido, o
que nos termos de Dower [1993, p.42], seria uma propaganda de combate ao quarto
inimigo do Japão na guerra, mais precisamente os sentimentos que desviariam os
súditos de seus deveres.
As flores de cerejeira ornamentando o
sacrifício de Asano e o suicídio de Omino são as mais marcantes cenas que
propagam a ideologia necropolítica do Estado neste longa-metragem, inserindo na
primeira cena uma estética adotada a poucos anos pelo governo imperial [a flor
de cerejeira como símbolo de sacrifício pelo imperador, ou, de forma geral,
pelo dever, pelo bushido] e na cena final a compreensão, aceitação e
comprometimento com os sofrimentos que a lealdade exige, incluindo os
sacrifícios das vidas de entes queridos, e da própria.
Além de propagar aos súditos a apologia ao
sacrifício pelo dever, que naquele momento da história japonesa era a lealdade
ao Imperador, o filme de Mizoguchi insere na narrativa o próprio monarca como
personagem, característica ausente das outras versões dessa história
[Ohnuki-Tierney, 2002, p. 149]. Embora não apareça diretamente, o Imperador é
citado por cortesãos, tendo lamentado o fracasso do Lorde Asano em tirar a vida
de Kira no castelo do Xogum, e também expressando sua aprovação na busca de
vingança dos ronins de Ako. Dessa forma a propaganda inserida no filme fecha o
círculo; não apenas difunde sua ideologia necropolítica, justificada sob a
lealdade ao Imperador, como também sugere que o próprio aprova estes ideais.
Conclusão
Em resumo, podemos
concluir que, como peça de propaganda, o filme “Genroku Chushingura” de Mizoguchi,
buscou difundir a ideologia necropolítica do governo imperial de forma
direcionada às famílias japonesas. Esta obra buscou encorajar a aceitação e a
disposição aos sacrifícios exigidos pelo bushido, lembrando o público da
necessidade de superar os sentimentos desviantes, também com a ênfase de que o
próprio Imperador anseia por esta conduta.
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Boa Noite , Edelson , grato pela comunicaçao . E a primeira vez que leio algo sobre Necropolitica , que e uma politica de morte e sacrificio patrocinado pelo Estado. Gostei muito da tematica explicando o classico 47 Ronins e a propaganda de governo em defesa das ideologias de sacrificio. Penso que o cinema e uma forma riquissima de aprender sobre as culturas dos Orientes diversos.Sobre o topico 3'"-Valores e Costumes Estrangeiros ameaça,Naçao Japonesa "' Sobre esse topico 3 existe alguma semelhança atual com as politicas do Estado Russo ?Seria a politica externa da Russia ,que operou a invasao na Ucrania,sobre pretexto de caçar nazistas, a politica de um Estado Necropolitico? Abraços , Ricardo dos Santos Barbarra
ResponderExcluirOlá Ricardo. Fico grato pela leitura e pelo comentário. Respondendo à sua pergunta, a atual invasão da Ucrânia não se caracteriza como uma prática necropolítica, mas como uma guerra de base nacionalista do tipo bem convencional ao longo da história contemporânea. A necropolítica se caracteriza quando um Estado aplica à sua própria população medidas de matar e deixar morrer, como a tentativa de extermínio dos judeus no Império da Alemanha nazista, através do extermínio direto, ou pela desnutrição, fome e doenças por deliberada falta de assistência. A necropolítica é aplicada mais comumente sobre populações indesejadas dentro dos estados (judeus na Alemanha nazista, índios e negros na América colonial, etc.), seja na metrópole ou em territórios conquistados.
ExcluirEdelson Geraldo Gonçalves
Olá, Sr. Gonçalves. Parabéns pelo excelente e mui elucidativo texto.
ResponderExcluirEm “Genroku Chushingura” as cenas finais podem levar a uma certa frustração do telespectador dos dias atuais. Pois, ao longo das mais de três horas de duração, não surpreende que se aguarde um desfecho vibrante. Não é o que ocorre, visto a prática de “seppuku” dos 47 ronins ser devidamente velada. O que demonstra a vigência de um aparato estético: endossar a beleza do sacrifício e da morte pelo dever, retirando deles todo o horror que o escorrimento de sangue, gritos, grunhidos e expressões faciais de vidas que se esvaem podem acarretar ao telespectador. Uma forma de manipulação ideológica, de fato muito distinta da realidade dos campos de batalha.
O ponto abordado acima é aquele mais diverge de “Harakiri” (1962), de Masaki Kobayashi. Nesse, o realismo da encenação (característico de anos de questionamento de valores e rupturas com a tradição) de “seppuku” levou partes do público desmaiar nos cinemas, quando de seu lançamento. Chocante igualmente foi o desfecho da vida de Mishima, anos mais tarde.
Assim sendo, uma questão é quanto à estética em torno do “seppuku”. Até onde o Sr. conhece, durante os anos autoritários no Japão a concretização do ato (pelas representações teatrais, cinematográficas e porque não também na literatura) sempre se deu de modo velado, suave, leve (me parece que são fatores essenciais à sublimação pelo caráter de honra e heroísmo)?
A outra dúvida é sobre as origens do suicídio ritual. Fala-se que as raízes de tal prática estão no budismo zen. Mas de forma? Quais seus embasamentos teóricos e as mudanças que a argumentação sofreu até que viesse a se tornar prática obsoleta?
Atenciosamente,
João Antonio Machado.
Olá João. Obrigado pela leitura do texto e pelo comentário. É bem oportuna sua comparação entre a encenação do seppuku nos filmes do Mizoguchi e do Kobayashi, e isso se dá por serem filmes de bases ideológicas opostas, sendo um, uma propaganda de extrema-direita, e outro uma obra crítica à ideologia do governo japonês anterior a 1945, feita no pós-guerra por um diretor alinhado ao anarquismo. A encenação dos suicídios no filme de Mizoguchi está de fato alinhada com o padrão da propaganda militarista da época, sendo os sacrifícios representados sempre de forma sutil e digna, pois a intenção sincera por trás do sacrifício era o ponto verdadeiramente valorizado, não a estética do ato em si. John Dower compara essa característica da propaganda japonesa ao histrionismo da propaganda de guerra dos EUA no mesmo período, ao retratar seus heróis como verdadeiros heróis de ação, valorizando o elemento estético. Sobre as origens e fim do seppuku como prática aceita, de fato o significado do ritual tem bases budistas, pois ao se cortar o abdome (hara) se rompe o “dantian” o âmago do ser, ou nas palavras de Nitobe seria abrir a sede da alma para provar que está limpa. Essa prática, segundo o historiador Stephen Turnbull, é notada primeiro entre os samurais da família Minamoto, por volta do século XI, não sendo sua prática rastreável em nenhuma fonte em relação a samurais de outras linhagens antes desse período. A prática se generalizou após os Minamoto estabelecerem o primeiro Xogunato, até porque ela passou a ser uma forma de punição capital. Essa prática entrou em declínio como o governo Meiji, que em seu início buscou banir as características culturais japonesas que poderiam se interpretadas como bárbaras pelas potências ocidentais, das quais o respeito o novo governo ansiava, e apenas após o realinhamento conservador iniciado em meados da década de 1880 esta prática voltou a ser abertamente vista com admiração, sendo um destaque nesse ponto o seppuku do General Nogi em 1912.
ExcluirEdelson Geraldo Gonçalves
Olá, Edelson, bom dia! Muito obrigada pelo texto e pelas reflexões. Estou fazendo mestrado em História Social e estudo dois animes da década de 1980. Tenho me questionado a respeito da presença de um ideal de sacrifício nesses filmes e, nessa direção, gostaria de perguntar se na sua avaliação as construções que endossam o sacrifício estão sempre relacionado ao bushidô ou se há outros caminhos por onde se faz essa apologia. Muito obrigada!
ResponderExcluirOlá Thereza. Agradeço a leitura e o comentário. O bushido não é o único caminho pelo qual o sacroifício é valorizado na cultura japonesa, pois existe a virtude da sinceridade (makoto), que precede o bushido e foi incorporada por ele. Segundo essa virtude, a disposição a um esforço extremo, incluindo o sacrifício da própria vida, é a maior prova de comprometimento com um objetivo, inclusive dignificando um fracasso, ou mesmo um crime, se o empenho se mostrar sincero. É por exemplo por essa virtude que o líder da Revolta de Satsuma (1877) Saigo Takamori foi considerado um herói pelo Japão Imperial, mesmo tendo se rebelado contra o governo Meiji.
ExcluirEdelson Geraldo Gonçalves
Muito obrigada, Edelson!
ExcluirVocê teria alguma sugestão de leitura que trate ou aborde o makoto?
Obrigada mais uma vez :)
Sim. Você pode ter uma base sobre isso com o livro "O Crisântemo e a Espada" de Ruth Benedict, e Ivan Morris tem um livro exclusivamente sobre este conceito, intitulado "The Nobility of Failure" (também com uma edição em espanhol, "La Nobleza del Fracaso").
ExcluirEdelson Geraldo Gonçalves
Muito obrigada, Edelson!!!!
ExcluirOlá, Edelson. Agradeço deste já pelo ótimo texto e reflexões trazidas com este. Com o crescimento pelo interesse em Ásia, sobretudo pela cultura pop japonesa e coreana, a utilização de filmes, animes, jogos e mangás são importantes, como apresentação didática deste conteúdo para os discentes.
ResponderExcluirCélia Sakurai destaca que a utilização da imagem do samurai para à construção do ethos japonês, deveu-se ao distanciamento da imagem pública do Imperador em relação ao povo japonês. Logo, a figura do samurai foi utilizada para cumprir o papel de construção de um comportamento idealizado. Desta forma, com a utilização de invenções inventadas, o governo imperial se apropriou do Bushido como ethos nacional, sendo difundido que o sacrifício pelo Imperador também era o sacrifício pelo Japão. Outrossim, o sacrifício não era um produto do desespero (shinigurui) dos japoneses. Posto isso, vamos a pergunta. Além da utilização do Bushido, o dever de piedade filial dos japoneses para com o Imperador. Quais outras particularidades, o Sr. identifica como fonte deste encorajamento para o sacrifício japonês, durante os conflitos das décadas de 1930/1940?
Agradeço desde já pela paciência e pelo ótimo texto.
Atenciosamente,
Edvan Pereira Costa
Olá Edvan. Agradeço a leitura e o comentário. Eu diria que outras razões para o sacrifício dos japoneses naquele período seriam o nacionalismo de uma forma mais geral (defesa do solo, da raça e da cultura) assim como a defesa da própria honra (o giri para com o nome ou a "face") por parte daqueles que não queriam que suas famílias fossem envergonhadas em meio ao esforço de guerra.
ResponderExcluirEdelson Geraldo Gonçalves