PROBLEMATIZANDO OS SUMÉRIOS NO PERÍODO PROTODINÁSTICO por Leonardo Candido Batista


É muito comum existir uma aura de curiosidade quando debruçamos nos livros de história e nos deparamos com os sumérios. Sua existência gerou um status quase “místico”, sempre sendo atribuída como o berço da civilização. É claro que não podemos negar as influências humanísticas, como a literatura, urbanismo, escrita, que por volta do quarto milênio a.C., no Sul da Mesopotâmia, começaram a ficar mais evidentes, e hoje são os alicerces do que é considerado “civilizado”. O que muitas vezes é apresentado como sumérios, é um conceito muito vago, que geralmente pressupõe uma comunidade homogênea, de um povo que não se sabe muito sobre as origens, e que teriam migrado para a Mesopotâmia se estabelecendo como a “cultura mais avançada” daquelas redondezas, ganhando primazia sobre as outras. Uma característica adicional que geralmente se apresenta como o “milagre sumério”, é o surgimento da escrita cuneiforme, que fomentou tudo o que viria a ser a “civilização mesopotâmica” e suas zonas de influência. Um ponto importante de reflexão para entendermos questões étnicas e culturais dessa região, é nos distanciarmos desse substrato uniforme sumério, e partimos do princípio que essa sociedade coexistiu com culturas distintas que fizeram parte de sua construção histórica.

 

Interpretações baseadas em conflitos étnicos entre sumérios e acadianos pela manutenção do zênite etnocultural devem ser rechaçadas, pois esse período necessita ser analisado como um emaranhado cultural que fazia parte da realidade da região mesopotâmica por volta do terceiro milênio a.C., sendo que a cultura não é uma abstração estática, como muito bem explica Fredrik Barth (2005, p.17), essa é induzida nas pessoas por meio da experiência, ao ponto de ser constantemente gerada pelas práticas e meios das quais se dá o aprendizado. A variação cultural é contínua, não no sentido de expressar todas as formas e gradientes uniformes; existem descontinuidades um pouco abruptas, e agregados padronizados de algumas ideias compartilhadas ou em contrastes com outros. Mesmo que o sumério como escrita perdurou resiliente até Sargão, é perceptível que nomes em acadiano e até mesmo palavras de origem hurrita existiram no período Protodinástico.

 

O Problema sumério

Um ponto muito debatido na historiografia mesopotâmica foi a questão étnica da região, conhecido como o famigerado “problema sumério”, que resumidamente baseia-se na discussão se os sumérios eram os habitantes autóctones da Baixo Mesopotâmia, ou se chegarem tardiamente. Essa questão foi formulado, devido alguns pesquisadores acreditarem que esse povo não teria adentrado na Mesopotâmia meridional pouco antes do Dinástico I (por volta de 2900 a.C.), sendo que para esses não existiam evidências da língua suméria nos textos do período Uruk. É comum se deparar com formulações de hipotéticas etnias pré-sumérias (proto-eufratiana e proto-tigridiana), que teriam habitado essa localidade, consequentemente sendo seus antecessores. No entanto, Gonzalo Rubio (2007, p. 7 – 8) considera o “problema sumério” como uma falácia étnica, explicando não haver nenhum substrato identificável que tenha deixado vestígios no léxico. Sendo assim, perguntar de onde os sumérios vieram, ou quem estava lá antes deles, seria um autoengano, já que a terminologia “sumério” não é necessariamente um etnônimo direto. Todas as discussões embasadas nessa problemática serão sempre uma aventura nas traiçoeiras águas da tentativa de vincular uma língua (e antropônimos) a etnicidade. A respeito disso, é importante notar a presença de nomes semitas entre os escribas mencionados nos colofões dos textos sumérios.

 

No entanto, isso não significa que o portador do nome semita falasse alguma língua relacionada a esse tronco, nem que a presença de um nome sumério apontasse para outra coisa que não o contexto social e religioso. Diante das dificuldades de esboçar qualquer figura etnolinguística do início da Mesopotâmia, a velha dicotomia sumério/acadiana às vezes é substituída com outra supostamente mais sutil: norte (semita) contra o sul (sumério). Tal polaridade é na maior parte do tempo baseada em seus diferentes sistemas de posse de terra, mas que no final das contas, recicla a tradicional divisão étnica. Mesmo com duas línguas diferentes bem atestadas, a história e cultura mesopotâmica devem ser entendidas como uma rica tapeçaria, cujos variáveis fios estendiam-se ao longo de um período de mais de três milênios, com uma variedade geográfica continuamente pontuada por interações com outras áreas. (RUBIO, 2007, p. 8). Essa problematização é fundamental para não cairmos na trampa de buscar as “origens da civilização”, e como muito bem lembra Nicole Brisch (2013, p. 111), embora exista um desejo de investigar os atores por de trás desse “prelúdio”, devemos entender que a designação “sumério”, em primeiro lugar, deve ser aplicada ao fator linguístico, não para um grupo étnico. Os sumérios se denominavam como “povo da cabeça negra”, e chamavam seu habitat simplesmente de “terra nativa”. Provavelmente uma reconstrução da palavra Kengi (r) = lugar e Gir = nativo. Já a linguagem suméria era conhecida como eme-gir, literalmente “língua nativa”.

 

Partindo desse pressuposto, entendemos que os aspectos culturais do período Protodinástico eram contínuos, com grupos étnicos podendo coexistir em certa harmonia em um mesmo território, portanto, devemos enxergar essa temporalidade percebendo uma dicotomia entre sociedade e língua suméria. Essa premissa é importante para o leitor se desvencilhar da imagem mítica como a Suméria sendo o limiar da História, sociedades anteriores já partilhavam trocas de informações, sendo que a cultura viajava através desses contatos evidentes desde o quinto milênio a.C.

 

Geografia e hidrografia da Mesopotâmia meridional

A configuração ambiental da Baixa Mesopotâmia fora um dos pressupostos para os primeiros assentamentos na região, baseavam-se em características uniformes, configurada em uma certa unidade ambiental, diferentemente da maior parte do Oriente Próximo. Nicolas Postgate (1990, p. 18) comenta que geologicamente essa área é de origem mais recente – uma acumulação aluvial depositada pelos rios Tigre e Eufrates, na trincheira profunda entre o escudo árabe ao oeste e as dobras dos Zagros. O aspecto mais evidente desse terreno é a sua horizontalidade. A 500 km ao norte da linha do golfo, a paisagem geral se eleva menos de 20 metros sobre o nível do mar, resultando em um gradiente de 1:25.000. Existem poucos obstáculos para uma mudança de percurso fluvial, e em um espaço de poucos anos, o panorama natural pode passar de um deserto estéril a um lugar pantanoso. Amelie Kuhrt (2000, p. 34) complementa citando que o curso dos rios que banhavam a Mesopotâmia meridional não era sempre estável, mudando em diversas ocasiões. Esse fato, somada as inundações da primavera, depositavam excesso de lodo, dificultando a irrigação. Outro perigo é a rápida evaporação das águas superficiais, causando a salinização do solo.

 

Na Antiguidade a costa do golfo pérsico encontrava-se mais ao norte do que atualmente, apesar de não ser consenso entre os pesquisadores. Os vastos pântanos faziam parte do ambiente da Mesopotâmia meridional, e como destaca Amelie Kuhrt (2000, p. 33 – 34) essa configuração representou uma importante fonte de recursos, ao prover caniço e junco para a fabricação de coberturas e produtos de vime, como cestos e esteiras, além de fornecer alimentos, como pescados, aves aquáticas e javalis. A tamareira era de extrema importância na região, já que pela falta de outras árvores, suas folhas podiam ser utilizadas para a construção de telhados, enquanto o tronco fibroso permitiu a confecção de cordas e edifícios leves. Seu fruto era valoroso para a alimentação, madurava no outono complementando as colheitas na primavera, sendo armazenado facilmente.

 

Uma peculiaridade dos vales fluviais é a falta de certas matérias-primas, como materiais de construção mais adequados e robustos, assim também como minerais. A. Caballos e J.M Serrano (1988, p. 12) comentam que o ecossistema local é correspondente pelos fatores bióticos, edafológicos, climáticos e geomorfológicos, sendo a pradaria o biocoro predominante. Na transcendência do desenvolvimento histórico, as espécies arbóreas endêmicas eram caracterizadas pelas tamareiras, álamos, adelfas e acácias. Na atualidade o território é composto por palmeiras. Outra particularidade a se considerar, é a divisão de uma série de unidades fisiográficas que circunscreviam esse território, divido por Buringh (1957, apud A. CABALLOS e J.M SERRANO, 1988, p. 12 – 14) em: estuário, zona pantanosa, delta, planície fluvial e planaltos desérticos.

 

A morfologia do estuário é caracterizada pela alternância de zonas ribeirinhas baixas, aterros fluviais, e pequenos canais irrigados pelo ritmo do aumento das águas. Os pântanos eram formados na área onde se convergia o Tigre e Eufrates, e apresentavam um nível freático muito elevado. O delta era composto pelo leito de inundação concebido pelos rios nas proximidades do paralelo de Uqair e Ur, onde a superfície encontra-se no caminho de uma infinidade de canais naturais interligados e cujos cursos não são fixos. A planície fluvial fora constituída pelas águas levadas pelos rios, que contribuiu para a formação de ribeiras altas, que uma vez transbordas, causavam inundações catastróficas. Por último, o planalto desértico, configurado por espaços onde o aproveitamento da irrigação era dificultado pela natureza muito elevada dos terrenos. Devemos lembrar que o impasse da falta de materiais na Mesopotâmia meridional, foi o estopim para que os habitantes dessa região organizassem expedições comerciais, e inclusive, tentar estender seu domínio político para o norte e noroeste, controlando assim essas matérias-primas.

                                  


Figura 1 —  Mapa fluvial da Baixa Mesopotâmia

Fonte: CABALLOS, A; SERRANO, J.M. Sumer y Akkad. Madrid: Akal, 1988.

 

Períodos arqueológicos

Com base em um conjunto arqueológico de artefatos, pondera-se que a cultura mais antiga da Mesopotâmia meridional é a de Samarra datada do sexto milênio a.C. Ela fora identificada em lugares como o leste iraquiano perto da fronteira com o Irã, e também ao norte de Bagdá. Ana María Vázquez Hoys (2004, p. 16) descreve que esse período foi caracterizado por sua cerâmica de superfície bege clara, um pouco arrugada e decorada com temas geométricos pintados de vermelho vivo com asserções figurativas de animais e dançarinos. Essa sociedade aparentemente exercia atividades como a agricultura, pecuária e caça, praticando uma forma rudimentar de irrigação; utilizando as cheias do Tigre para regar os campos de trigo, aveia, cevada e linho. O centro do assentamento apresentava um fosso, talvez para proteger os habitantes contra invasores. As casas possuíam certo estilo arquitetônico em plano retangular, construídas em ladrilho. Certos ritos funerários também eram praticados, com os adultos sendo enterrados em posição fetal, envoltos em vendas de betume, enquanto as crianças eram sepultadas em jarros ou grandes recipientes.

 

A cultura em potencial evidência dessa época surgiu um pouco mais ao sul, caracterizada por sua cerâmica pintada, foi batizada de Ubaid. O sítio foi identificado no que antes fora a cidade de Ur nos anos 1920 por Leonard Wooley, e suas sequências culturais foram classificadas na década de 1960 por Oates. Todavia, existem outras áreas além de Ur que constatam traços da sociedade de Ubaid, que muito ajudam a complementar nosso conhecimento, e como sugere Postgate (1999, p. 38), observando as escavações em Eridu, percebe-se que nas fases mais antigas desse estágio houve uma inclinação para a agricultura. Nos níveis mais antigos aparecem ferramentes de caça e pesca, ao passo que os materiais agrícolas surgem tardiamente. É razoável, baseando-se nestas informações, considerar que os momentos iniciais do período Ubaid aconteceram em torno de 5000 a.C., com o surgimento dos primeiros assentamentos nessa faixa (POSTGATE, 1990. p. 39).

 

De certa forma, a sociedade de Ubaid foi ordenadora da planície mesopotâmica, detendo uma arquitetura habitacional (apesar de um pouco rudimentar), com cabanas construídas de barro, podendo ter sido costumeiro a construção de templos no centro do assentamento. Mario Liverani (2016, p. 95) especula que pode ter havido uma tendência à estratificação, mesmo os indícios não sendo muito expressivos. Algumas evidências contribuem para essa interpretação, como a presença de produtos artesanais, fruto de atividades especializadas; cotejamento de um crescente volume de riqueza em contextos públicos e simbólicos, e menos nos familiares. Isso sinaliza a existência de um excedente para o desenvolvimento comunal, e a tendência final desse vislumbre à centralização, é o início de uma produção em série; envolvendo artesões em tempo integral, contando também com a presença de uma espécie de “agência” política que dirige e coordena a atividade econômica da comunidade.

 

O período que segue Ubaid é conhecido como Uruk (4000 2900 a.C.), onde ocorrera a substituição da cerâmica pintada, por uma sem adornos e feita em tornos, denotamos aqui o surgimento de traços mais sofisticados tanto nos aspectos urbanísticos quanto humanísticos, não tendo mais características de um povoado, mas sim algo muito similar com o que viriam ser as cidades-estados sumérias, e como bem resume Harriet Crawford (1991, p. 17) o período Uruk foi caracterizado pelo rápido crescimento da quantidade de assentamentos e o surgimento de uma hierarquia em quatro níveis. Pela primeira vez essas construções tinham tamanho suficiente para serem chamadas cidades. Com mudanças acentuadas, veio à tona o desenvolvimento de um sistema administrativo complexo com uma sociedade estratificada, com o advento do que podemos chamar líderes seculares.

 

Figura 2 —  Cronologia das principais fases arqueológicas

Fonte: KUHRT, Amelie. El Oriente Próximo en la Antiguedad (c. 3000 – 300 a.C.) Volumen 1. Barcelona: Crítica, 2000.

 

Os dados arqueológicos também trazem à luz a emergência de exércitos, assim como uma vida militar organizada. As mudanças tecnológicas também não ficaram atrás, na metalurgia houve um sofisticado processo de moldagem; na cerâmica vemos o uso da roda rápida; e talvez algo de demasiada importância, à introdução da primeira escrita pictográfica em tabletes de argila. O período Uruk foi mais inovador do que qualquer outro na história da Mesopotâmia, sua influência atingiu lugares como o Mediterrâneo e o platô da Anatólia (CRAWFORD, 1991, p. 17). Essa peculiaridade de uma rede de influências que começa a ser distribuída por outras áreas do Antigo Oriente Próximo, é de suma importância para entendermos como a cultura não era algo ilhado nas sociedades da Antiguidade.

 

Para começarmos a ter uma noção dessas redes, é necessário explicar como esse período fora importante para enrijecer contatos com outras regiões, é o que Guillermo Algaze (2008, p. 68) defende como “expansão de Uruk”, que resumidamente podemos entender como uma integração das sociedades da Mesopotâmia meridional por volta da segunda metade do quarto milênio, onde a cultura dessa região foi difundida por nódulos em várias localidades, embora Gonzalo Rubio (2007, p. 20) aponte que essas conexões culturais poderiam ter existido já no quinto milênio no período Ubaid. A penetração de Uruk foi um processo de implantação citadina, ao passo que as formas sociais e urbanas mesopotâmicas foram introduzidas em paisagens essencialmente virgens (ALGAZE, 2008, p. 69). Apesar dessa explicação ter muitas controvérsias por se basear na Teoria de sistema-mundo do sociólogo Immanuel Wallerstein, e pelo fato de muito pouco sabermos do período Uruk, ela é um caminho para entendermos essa teia que gerou uma gama de entrepostos ao sul, estabelecendo locais estratégicos de suma importância na periferia mesopotâmica, beneficiadas pela intersecção dos rios e outras rotas terrestres.

 

Na fase final da cultura de Uruk (Uruk IV 3500 – 3200 a.C.) aparecem os primeiros documentos escritos de forma pictográfica, compostos em sua maior parte por registros de contas. O sumério como língua escrita começa a ter formas mais contundentes no período que sucedeu Uruk, também conhecido como Djemdet-Nasr. A. Caballos e J.M Serrano (1988, p. 23 – 24) explicam que essa etapa é a continuação dos últimos momentos de Uruk, sendo também uma fase proto-literária, pois corresponde ao embrião do sistema de escrita suméria. Aqui foram encontrados os selos mais antigos, primeiro em forma plana e depois em formato cilíndrico, sua função era para a inalterabilidade do conteúdo após impresso, com a finalidade de facilitar o funcionamento do sistema produtivo, agilizando os intercâmbios comerciais. Amelie Kuhrt (2000, p. 41 – 42) resume que até 2900 a.C., as técnicas agrícolas e a exploração de fontes alimentícias, foram aproveitadas pelos grupos de poder que surgiram em algumas cidades, assegurando assim um importante excedente. Esse processo deu lugar a uma estrutura social articulada, a qual cada cidade contava com uma autoridade suprema que provavelmente controlava a maior parte dos recursos. A complexidade crescente dessa organização urbana é observada no desenvolvimento da escrita, aplicada também à abundância de diversas atividades. Cada vez mais a Baixa Mesopotâmia moldava-se em uma estrutura de cidades-estados.

 

Período Protodinástico

O período Protodinástico é mais abundante em fontes textuais e dados arqueológicos, sendo maior em sua composição e homogeneidade histórica. Essa época é constantemente classificada como a “clássica Suméria” que tanto ouvimos ser o berço da civilização. No entanto, uma reconstrução do passado sumério é um exercício bastante complicado, e como muito bem destacou Samuel Noah Kramer (1963, p. 33), essa sociedade não escreveu uma história, na concepção geral de seu significado, em termos de desdobramento e processos subjacentes. Os intelectuais sumérios, não possuíam conhecimento de definição ou generalização, nem uma abordagem evolutiva para uma avaliação histórica. Limitados pela visão cotidiana do mundo, aceitando a verdade axiomática de fenômenos culturais e acontecimentos. A denominação de sequência arqueológica chamada Protodinástica foi estabelecida pelo Instituto Oriental de Chicago, e segue classificada em subdivisões (PD I, II, III A e B).

 

Para Marc Van de Mieroop (2004, p. 41) após o período Uruk, a influência da Mesopotâmia meridional cessou em outras partes do Oriente Próximo, restringida no âmbito local, embora alguns séculos mais tardes essa rede de conexões voltou a ser estabelecida. Certas habilidades como a escrita se tornaram abundantes (embora raras fora da região sul-mesopotâmica), possibilitando um melhor entendimento do desenvolvimento político e cultural. A organização se deu em forma no estabelecimento de cidades-estados, que constantemente viviam em interação competindo uma com a outra. Paul Garelli (1982, p.69) menciona que o processo de urbanização já se mostrava avançado na planície meridional. Duas linhas de cidade desenhavam curvas aproximadamente paralelas próximas ao Eufrates, e um canal que ligava este rio ao Tigre eram a leste: Adab, Zalabam, Umma, Bad-Tabira e Lagash; a oeste: Akshak, Kish, Nippur, Shuruppak, Uruk e Ur.

 

Mario Liverani (2016, p. 151) faz uma análise sobre a distribuição do vale mesopotâmico durante essa época, e conclui a existência de um arranjo regional mais engendrado, embora as comunidades estivem um tanto isoladas por estepes áridas ou pântanos. Piotr Michalowski (1997,p. 98) chama a atenção para o conjunto de artifícios simbólicos e outras similaridades na cultura material, que levam o leitor a crer que a Suméria foi uma entidade cultural, todavia, existia muita diversidade entre as cidades-estados, assim como semelhanças superficiais. Elas foram propícias para novas elites regionais e hierarquias locais de poder, diferentes representações simbólicas dessas relações e novas categorias (principalmente escribas e sacerdotes), que possuíam suas posições e controle sobre esses símbolos. Tais grupos tinham um forte interesse no status quo e as forças separatistas resultantes das cidades sumérias, resistiram às tentativas de unificação em um estado territorial.

 

A rede de canais fora a base desse conjunto integrado. A coesão interna desses sistemas, não implicavam necessariamente no todo, ao passo do que foi benéfico para uma área poderia não ter sido para outra, pois todas dependiam do fluxo das águas. O isolamento gerado pelas possibilidades irregulares oferecidas pela natureza, incitou as cidades a se formarem em Estados distintos. A tendência ao separatismo manteve-se sempre viva, embora isso não tenha atrapalhado a elaboração de uma sociedade comum, cuja irradiação alcançou regiões mais setentrionais (GARRELLI, 1982, p.69). A questão dessa divisão estatal estar relacionada a essa circunstância, pode ter sido também ideológica, como bem observa Marc Van de Mieroop (2004, p. 45) o conceito de articulação de cada cidade possuir sua independência, está relacionada com o imaginário de que eram habitações particulares dos deuses e deusas, construídas desde tempos primordiais.

 

Fontes

Como já mencionado, as fontes históricas desse período são mais consistentes, embora não nos permita formar uma construção detalhada do passado. No campo da cultura material, Amelie Kuhrt (2000, p. 43) menciona que esses objetos são procedentes de diversos centros urbanos em forma de restos de edifícios, placas esculpidas, selos cilíndricos, figuras em posição de oração e cerâmica. Já o aparato escrito encontra-se distribuído de forma desigual ao longo de toda essa época, formado por grupo de tabletes que correspondem a diversos depósitos de anos distintos. Uma das principais fontes textuais para a interpretação das cidades-estados é conhecida como “Lista Real”, apesar de alusões a reinados que duraram milênios, fazendo nos questionar sobre a natureza mitológica dessa fonte. I.M Diakonoff (1991, p. 74) descreve que essa lista registra todos os reis que supostamente governaram em ordem consecutiva, sucedendo um ao outro nas múltiplas cidades da Mesopotâmia desde o início dos tempos. A sucessão real em uma mesma cidade, era convencionalmente relacionada a uma dinastia.

 

Essa lista é composta por relatos mitológicos e históricos, com dinastias coexistindo contemporaneamente. Marc Van de Mieroop (2004, p. 43) complementa explicando que cronologicamente o texto demarca o momento em que a realeza “desceu dos céus”, ou seja, se inicia antes do dilúvio até a dinastia de Isin (1900 a.C.). Os seguimentos que cobrem do Protodinástico, as cidades-estados citadas são primeiramente localizadas ao sul, com um destaque em especial para Ur, Uruk e Kish. Também são mencionadas cidades em outras localidades como Awan, Hazami e Mari. As primeiras partes da Lista Real são baseadas em aspectos lendários, atribuindo reinados impossivelmente longos de 3600 anos, por exemplo, para figuras mitológicas como Dumuzi, que era conhecido como sendo o marido da deusa Inanna, sendo assim, puramente fictício (MIEROOP, 2004, p. 43). Mais tarde essa lista foi utilizada pela dinastia de Isin em busca da legitimação de seu reinado.

 

Outras fontes importantes, mas não tão conhecidas, são os “Hinos sumérios do templo”. Essa obra diferencia-se um pouco das outras, pois sua compilação é atribuída a uma mulher, que pode ter sido uma das primeiras autoras da história, conhecida como Endehuana. Gwendolyn Leick (2003, p. 142) defende que ela causou uma enorme impressão em sucessivas gerações de escribas, sendo suas obras copiadas e lidas durante séculos após sua morte. Recentes estudos revogam dúvidas anteriores sobre a autenticidade de sua criação literária, situando-a firmemente no período acadiano durante o reinado de Naram-Sin. Endehuana não só compilou os hinos, como também foi autora de uma complexa composição literária conhecida como Nin-me-sara. Nicolas Postgate (1999, p. 41) especifica que essa coletânea de hinos é baseada em poemas de curtas invocações individuais de todos os templos da planície meridional. Cada um descreve o templo e sua deidade, em uma linguagem figurativa que deve estar cheia de alusões, em sua maioria, perdidas para nossas modernas concepções.

 

Referências

Leonardo Candido Batista, Mestre em História Social pela UEL

 

ALGAZE, Guillermo. Ancient Mesopotamia at the Dawn of Civilization. The Evolution of an Urban Landscape. Chicago. The University of Chicago Press, 2008.

 

BARTH, Fredrik. Etnicidade e o Conceito de Cultura. Antropolítica: Revista Contemporânea de Antropologia e Ciência Política – n.19 – Niterói: EdUFF, 2005.

 

BRISCH, Nicole. History and Chronology. In Harriet Crawford (org). The Sumerian World. New York: Routledge, 2003.

 

CABALLOS, A; SERRANO, J.M. Sumer y Akkad. Madrid: Akal, 1988.

 

CRAWFORD, Harriet. Sumer and the Sumerians. Cambridge: Cambridge University Press, 1991.

DIAKONOFF. I.M. The City-States of Sumer. In I.M Diakonoff and Philip L. Kohl (orgs). Early Antiquity. Chicago: Chicago University Press, 1991.

 

GARELLI, Paul. O Oriente Próximo Asiático: Das Origens às Invasões dos Povos do Mar. São Paulo: Edusp, 1982.

 

HOYS, Ana María Vázquez. Historia Del Mundo Antiguo Volumen I (Próximo Oriente y Egipto). Madrid: Sanz y Torres, 2004.

 

KRAMER. Samuel Noah. The Sumerians: Their History, Culture, and Character. Chicago: Chicago University Press, 1963.

 

KUHRT, Amelie. El Oriente Próximo en la Antiguedad (c. 3000-300 a.C.) Volumen 1. Barcelona: Crítica, 2000.

 

LEICK, Gwendolyn. Mesopotâmia: A Invenção da Cidade. Rio de Janeiro: Imago, 2003.

 

LIVERANI, Mario. Antigo Oriente: História, Sociedade e Economia. São Paulo: Edusp, 2016.

 

MICHALOWSKI,  Piotr. Sumerians. In: Eric M. Meyers (org). The Oxford Encyclopedia of Archaeology in the Near East Volume 5. Oxford: Oxford University Press, 1997.

 

MIEROOP, Marc Van. A History of the Ancient Near East ca. 3000-323 BC. Malden: Blackwell Publushing, 2004.

 

POSTGATE, Nicholas. La Mesopotamia Arcaica: Sociedad y Economía en el Amanecer de la Historia. Madrid: Akal, 1999.

 

RUBIO, Gonzalo. From Sumer to Babylonia: Topics in the History of Southern Mesopotamia. In: Mark  W. Chavalas (org). Current Issues in the History of the Ancient Near East. Claremont: Regina Books, 2007.

8 comentários:

  1. Olá Leonardo Batista, saudações!
    É válido creditarmos aos Sumérios o surgimento das primeiras cidades e aglomerações através do processo de desenvolvimento urbano?

    Clésio Fernandes de Morais

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    1. Clésio, fico muito feliz que tenha apreciado o artigo. Devemos frisar que assentamentos urbanísticos muito sofisticados já existiam no neolítico. Importantes sítios desse período, como o de Jericó na Palestina por volta de 6000 a.C., demonstram um certo know how arquitetônico, com habitações compostas por peças retangulares, santuários com estatuetas fálicas e de animais. Na Ásia Menor, temos o que talvez seja a mais famosa proto-cidade neolítica, o assentamento de Çatal Hüyük, que nos oferece uma riqueza material imprescindível como, por exemplo, uma rica documentação religiosa; esculturas representando animais, afrescos com danças ritualísticas e um conjunto cerrado de habitações. Agora o fenômeno que ocorreu na Baixa Mesopotâmia, referente ao Protodinástico ou a Suméria, como é geralmente conhecido, só foi possível referente a alta burocratização concebida por uma entidade política que modernamente chamamos de Estado. Essa consolidação, só pôde existir devido ao fortalecimento de atividades intelectuais como o surgimento da escrita, e uma matemática mais elaborada para a criação de diques, possibilitando uma agricultura mais abundante, registros e excedentes sobre a mesma, e for fim, a troca desses produtos agrícolas por matérias-primas de outras regiões, levando assim essa composição urbanística e a difusão da mesma que é comumente atribuída como a aparição das primeiras cidades para outras regiões do Oriente Próximo.

      Atenciosamente,

      Ms. Leonardo Candido Batista

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  2. Rogério Silva de Mesquita4 de outubro de 2022 às 22:19

    Gostaria de saber se podemos afirmar que foi através dos Sumérios surgiram as primeiras civilizações no Oriente Médio? Rogério Silva de Mesquita

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    1. Rogério, sua pergunta é muito pertinente, pois temos que entender que essa concepção parte de uma teoria antropológica utilizada pela arqueologia do século XIX conhecida como difusionismo, que concisamente pode ser entendida como determinada inovação praticada por uma cultura, ser difundida de diversas formas do ponto inicial para outras regiões. Atualmente o difusionismo não está completamente extinto, ao passo, que ideias como aculturação, sincretismo, e transculturação são estruturadas nessa teoria. Vere Gordon Childe foi um dos grandes porta-vozes dessa ideia, porém praticando um difusionismo mais moderado, baseado na premissa que migrações pré-históricas se espelharam difundindo a agricultura por outras regiões. A ideia é entendermos que essas sociedades não estavam isoladas, e por mais que a tese da expansão de Uruk seja frágil por motivos supracitados no artigo, devemos pensar que esse desdobramento da Baixa Mesopotâmia teve resinificações locais, o que levou a criatividade desses povos a desenvolver sociedades muito complexas e criativas.

      Atenciosamente,

      Ms. Leonardo Candido Batista

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  3. Boa tarde, Leonardo, tudo bem? Parabéns pelo artigo. É possível afirmar que o enterro de adultos em posição fetal era devido a alguma crença em reencarnação?

    Ana Paula Sanvido Lara

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    1. Muito obrigado Ana Paula, fico feliz que tenha gostado do texto. É uma pergunta um tanto complexa de se responder, tendo em vista que por falta de documentos textuais, a religião do neolítico não passa de mera especulação. Podemos pressupor que as práticas funerárias refletiam as crenças da sociedade neolítica sobre a morte, que talvez não fosse uma simples forma de sono eterno, se observarmos pela posição fetal dos corpos que automaticamente nos remete à vida. Somando as oferendas sobre os túmulos desses corpos, podemos suspeitar de uma crença na vida após a morte, e assim na existência de algo imaterial após o sepultamento.

      Atenciosamente,

      Ms. Leonardo Candido Batista

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  4. Olá, Leonardo
    Sou Nicolas Couto Neto Corrêa, resido na cidade de Nova Friburgo e curso Licenciatura em História pela UNIRIO através do consorcio CEDERJ.
    É notável que a cultura suméria possui uma religiosidade muito forte. O templo era construido no centro dos assentamentos, grande parte dos vestígios arqueológicos são ligados a religião, e uma das maiores elites eram os sacerdotes. Seria possível apontar a religião como a grande alavanca do desenvolvimento sumério ?
    Obrigado por seu texto e trabalho de pesquisa.

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    1. Nicolas, com certeza podemos considerar os aspectos religiosos importantíssimos para a composição da sociedade mesopotâmica no geral. No período protodinástico cada cidade-estado era representada por uma divindade patrona, sendo o lugal ou ensi o arauto de tal deidade, como se o mundo fosse um espelho refletindo o espaço etéreo. Essa ideia é muito reforçada pela Lista Real, onde vemos essa poderosa aura sendo reproduzida pelos reis que “desceram do céu”, empoderando e solidificando o papel real como caracterização do divino.

      Atenciosamente,

      Ms. Leonardo Candido Batista

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