Refletir sobre as regiões desérticas nos
encaminha primeiramente a ideia construída no imaginário coletivo de que são
desenhadas por longas extensões de terras cobertas por areias claras sob sol
escaldante, onde predomina a aridez do solo, a secura do clima e a inexistência
de vegetação, ou, em alguns casos, lembradas a partir de um oásis que rompe a
paisagem classificado como uma espécie de miragem salvatória.
Acrescido a essas percepções também se
veslumbra que a proporção de regiões da superfície terrestre que se enquadram
nessas características não são elevadas, mas pode-se dizer que há ledo engano
nessa referência, em razão de que aproximadamente um quinto dessa extensão
estão inseridas nesse padrão, o que contribuiu para que gradativamente
passassem a ser observados como objetos de pesquisas de diferentes áreas,
inclusive dos historiadores que os viram além das suas condições geográficas,
dentre os quais estão Maria Helena Trindade Lopes (1998), Andrés Diogo Espinel
(1998) e Rose Marsal (2014).
Tais espaços, embora sejam realidades
objetivas que majoritariamente se apresentavam como locais vazios, têm muitas
histórias a serem reveladas, embora as areias pudessem escondê-las, não
conseguiram apagá-las, interpretação essa cada dia mais observável a partir de
análises de pesquisadores que demonstram às influencias dessas terras em vários
aspectos não somente nas sociedades que se constituíram ao seu entorno, mas
também nas longínquas, todavia, “os enfoques e pontos de vista são distintos,
em função das regiões e problemas estudados dentro as representações,
vivências, experiências e interesses de cada região” (BARAJAS, 2011, p.8).
Exemplo da colocação mencionada acima está
presente quando tomamos os desertos Arábico e Líbico como referência ao Egito
antigo, uma vez que influenciaram a construção do mundo, das representações
socias e crenças dos indivíduos dessa sociedade. Todavia, como na História não
temos verdades absolutas, acredita-se que eles têm ainda muitas coisas a serem
reveladas, uma vez que por muito tempo estavam identificados como um rasgo de
terra que esteve à margem de muitas narrativas históricas, principalmente
quando a paisagem era coadjuvante na análise do processo.
E, devido ao entendimento da relevância que
deve ser concedida às regiões desérticas, e vendo-as como espaços
potencializadores para a construção da narrativa histórica é que esse trabalho
foi desenvolvido, buscando ressaltar que os desertos que margearam o corredor
produtivo do vale do Nilo foram componentes para a formação da sociedade
egípcia, mesmo que suas extensões não tivessem sido percorridas de forma
habitual e mais intensa se comparada com outras terras, mas, todavia, não é
possível rechaçar que esses espaços fizeram parte dessa história e contribuíram
direta ou indiretamente para perpetuar os acontecimentos da terra dos faraós,
como veremos no próximo tópico.
Uma terra, muitas histórias
Durante muito tempo, os desertos que
margearam o fluxo de água do rio Nilo, o Líbico e o Arábico, não integraram
estudos científicos constitutivos relacionados a história do Egito antigo. A
justificativa central para a exclusão de não serem identificados como
componentes da formação cultural faraônica seguiu os rastros dos primeiros
egiptólogos franceses do século XIX que os consideravam pouco relevantes como
objeto de análise, devido ao fato de que era o vale do rio Nilo e sua área
circundante que serviam como espaço de referência dos pesquisadores, dessa
forma, tudo o que estivesse fora dos limites do rio não deveriam ser tratados como
parâmetro de pesquisa, acrescido ao fato que até então eram as grandes
construções que os interessavam.
Por certo, entende-se que a partir da
compreensão da postura mencionada acima por parte desses estudiosos, é possível
afirmar que contribuíram para gerar hiatos na aquisição do conhecimento da
história dessa sociedade, a qual, seguramente, começou a ser revertida na
segunda metade do século XX quando regiões desérticas passaram a ser incluídas
como diretrizes de análise nas produções acadêmicas, e não mais identificadas
somente como locais inóspitos e sem relevância, mas alçados a lugares
possibilitadores de trazerem à tona informações que contribuiriam para que
acontecimentos históricos pudessem ser elucidados, principalmente os que se
direcionavam a temporalidades mais remotas ligados aos períodos primevos.
Entretanto, até que se chegasse ao ponto de
aceitação que esses territórios poderiam ser utilizados como suportes nos
campos de pesquisa, não foi um caminho percorrido de maneira fácil e simplista
como possa parecer, pelo contrário, os primeiros pesquisadores que adotaram os
desertos como objeto de estudo no início do século XX sofreram críticas no meio
acadêmico, alguns tiveram seus trabalhos contestados e negligenciados, mesmo
àqueles que se propuseram a estudar os espaços desertificados mais próximos ao
vale do Nilo.
E, a medida que a mudança gradativa de
compreensão referente aos desertos foi se consolidando, esclarecimentos sobre
lacunas a respeito da história dessa sociedade começaram a ser gerados, e a
partir de então, nota-se que ecos do passado passaram a soar na
contemporaneidade, fronteiras que foram sendo rompidas não somente no aspecto
natural, mas também em outros segmentos.
A despeito disso, destaca-se que os
relatórios mais recentes apontados como desmembramento dos descobrimentos
promovidos pelos achados arqueológicos geridos a partir de levantamentos
topográficos e complementados pelo registro visual de satélites, fez com que os
desertos fossem transformados em lugares a serem decifrados, contribuindo para
a compreensão principalmente do período protofaraônico, período sobre a qual as
informações que se tem até então ainda são nebulosas, principalmente as
centradas na circunscrição da cidade de Hieracômpolis, indicada como centro de
expansão no processo de conquistas.
Consonante ao mencionado acima, temos o
trabalho de Rose Marsal (2014, p.37) que afirma que entre a décadas de 1920 e
1930, o deserto ocidental egípcio foi visitado por vários exploradores que
realizaram o mapeamento da região, embora nesse período ainda prevalecesse na
mente desses desbravadores a ideia de que alcançariam e descobririam lugares
míticos.
Todavia, mesmo tendo essa intencionalidade
abarcando os projetos desse momento, algo que não se deve perder de vista é que
foi a partir de então que ocorreu o despertar do interesse científico para com
esses locais promovendo as demarcações de regiões desérticas, áreas que quando
observadas panoramicamente do alto, se constituíram numa ampla zona salpicada
de recortes espaciais, as quais passariam a receber missões científicas que
cooperariam significativamente para a criação de novas linhas de investigação,
ou, ainda, a sua integração em projetos arqueológicos maiores já existentes,
coordenados por pesquisadores oriundos da Alemanha e França, dentre muitas
outras nacionalidades, comprovando que esse chão tem história e é revelador de
novos conhecimentos.
Nessa perspectiva, Marsal, destaca que,
“o objetivo das primeiras expedições era
modesto: localizar e posteriormente visitar os sítios já registrados por
exploradores anteriores. Devido ao contexto da segunda guerra mundial, na
década dos anos de 1930, alemães, ingleses, egípcios, húngaros, entre outros,
quiseram participar da exploração desse deserto. O deserto era uma encruzilhada
de interesses políticos e geoestratégicos. Pouco a pouco, os achamentos foram
ganhando importância, pois já se descobririam novas paisagens, maciços e vales
desconhecidos, senão a presença de atividades antrópicas que escapavam da
compreensão dos primeiros que delas falavam”. (MARSAL, 2014, p. 62)
Antonio Pérez Largacha é outro autor que
apresenta projetos de investigação inseridos nesse novo contexto
interpretativo, e mencionou que,
“o primeiro é o Combined Prehistoric
Expeditio (CPE), iniciado em 1972 e dirigido por Fred Wendorf, que colocou
a importância das culturas que durante o Holoceno habitaram o deserto
ocidental, destacando-se em Nabta Playa (Wendorf, et al., 2001). Igualmente o
Dakhleh Oasis Project, centrado nas mastabas dos governadores de Balat
(VI dinastia), também o estudo em seu entorno, rotas e inscrições rupestres
(Rossi e Ikran, 2013), assim como o Theban Sesert Road Survey,
iniciado em 1992 e que, ainda centrando-se nas manifestações presentes nas
cercania de Tebas, podendo fechar-se a maioria entre Nagada II e III, há posto
de sobressair a necessidade de explorar e entender as rotas e caminhos que,
desde os centros urbanos do vale do Nilo se adentravam nos desertos (Darnell
2002, 2013). Finalmente, o projeto ACACIA 13, continuado a partir de
2009, que foi centrado especialmente em Gilf Kebir” (LARGACHA, 2015, p.91).
Andrés Diogo Espinel, também faz parte do rol
de investigadores integrantes da nova geração que aborda a questão das
fronteiras e limites do Egito antigo. Segundo ele, ao falar da demarcação de
fronteiras nessa sociedade há que se diferenciar ao menos dois tipos: primeiro;
as políticas, cujos limites eram de uma
jurisdição que serviam de ruptura entre entidades diferentes; e, segundo; as
constituídas pelos limites naturais representados pelo vale do rio e pelo
deserto, que, de certa maneira, não tinham porque coincidir uma com a outra
como referência de demarcação (ESPINEL, 1998, p.23).
Relacionado aos limites naturais e se enquadrando
no segundo ponto indicado acima, o autor chama a atenção para a perspectiva de
análise construída pelos próprios egípcios no decorrer do primeiro período
intermediário conjugada na ideia da
‘observação pedológica’, ou seja, a utilização do uso de cores para
destacar a representação imagética de observação dos solos, sendo a cor
vermelha simbolizando o aspecto negativo, nesse caso os desertos, bem como a
preta, para o lado positivo, visto que a terra negra formava um solo fértil
advindo do limo depositado durante a inundação, e frente a ele se opunha o
deserto (ESPINEL, 1998, p.12).
Inserido nesse contexto,
“a paisagem (era) fortemente orientada, com o
rio fluindo para o norte e os dois horizontes ocres dos desertos arábico e
líbico, atrás dos quais surgia e desaparecia o disco solar toda manhã e toda
tarde. [...] O lado fértil que seguia o rio ostentava tons puros: negro no
momento da lavra, verde brilhante e luminoso quando cresciam as culturas,
amarelo ardente quando o trigo estava maduro. [...] A orla do deserto marcava
brutalmente o limite entre o mundo ordenado e nomeado da planície fértil e as
vastas extensões informes e inorganizadas de areia e rochedos estéreis. [...] A
grande uniformidade dessa paisagem, que se repetia de Elefantina ao Delta, era
outro traço específico do Egito” (ESPINEL, 1998, p.22).
Seguindo outro entendimento, porém dentro da
análise das regiões desérticas, os egípcios compreendia-los a forças
assombrosas que levavam ao caos, bem como a lugares terríveis e cheios de perigos,
ademais, eram frequentados por animais perigosos e criaturas fantásticas
desconhecidas, incluindo ao fato de que eram habitados por grupos de pessoas
marginais que ameaçavam a órbita do desenvolvimento e organização da vida no
universo do entorno do rio, assim, diante de tantos malefícios, deveriam ser
evitados de serem transpostos.
Maria Helena Trindade Lopes acrescenta que a
proximidade marcante dos desertos no espírito do homem egípcio, desenha imagens
de morte, isolamento, solidão e silêncio, ademais, também conjugavam tanto
lugares de transcendência sagrada e a espaços pertencentes aos mitos da criação
do estado faraônico (LOPES, 1998, p.217).
Entretanto, mesmo prevalecendo a percepção
negativa entre os egípcios em relação aos desertos, isso não foi suficiente
para que evitassem a percorrê-los, visto que foram atravessados não somente por
beduínos que buscam de pasto para seus animais, mas, também, por aventureiros e
comerciantes condutores de caravanas que faziam chegar ao Egito produtos e matéria-prima,
principalmente os oriundos do oriente e da Núbia ao sul.
Além de que, algumas faixas de terras
desérticas localizadas mais próximas do leito do rio Nilo serviram para os
viajantes como uma espécie de caminho alternativo, quando o transcurso fluvial
fosse impossibilitado de ser realizado, fazendo com que, desviassem seu trajeto
perfazendo um contorno que atingiria o solo árido para, posteriormente,
retornarem às águas do rio. Diante dessa situação, o deserto pode ser
interpretado como uma área de comunicação para se alcançar o destino final
estabelecido.
Sendo assim, encerro a presente reflexão
enfatizando que as considerações apresentadas no decorrer do texto são alguns
encaminhamentos que permitem fazer com que a história do Egito antigo seja cada
vez mais instigante e observada a partir de diferentes frentes de análise.
Referências
Maura Regina Petruski. Doutora em História
pela Universidade Federal do Paraná. Professora do departamento de História da
Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Integrante do corpo docente da
pós-graduação Mestrado de Ensino de História (PROFHIST) da Universidade
Estadual de Ponta Grossa (UEPG)
BARAJAS,
Dení Trejo. Los desiertos em la
historia da América: Uma mirada multidisciplinaria. Editorial Morevalladolid.
México, 2011.
ESPINEL,
Andrés Diego, Fronteras y demarcaciones
del território egípcio em el reino antiguo. Stvd. hist., W antig.
16,1998, pp. 9-30
LARGACHA,
Antonio Pérez. Algunas reflexiones
sobre Gilf Kebir, el desierto occidental y los orígenes de la cultura egípcia.
BAEDE, Boletin de la Associación Espanhola de Egiptologia, N.24, p. 89-110.
LOPES,
Maria Helena Trindade. Leitura do espaço à interiorização da sua
mensagem – a construção de uma civilização. Revista da Faculdade de
Ciências Sociais e Humanas, n." 11, Lisboa, Edições Colibri, 1998.
MARSAL,
Rose. Los primeros exploradores del
Desierto Occidental Egipcio: Evidencias del Neolítico Sahariano. In: VIDAL,J.
& RIVA, Rocio da (orgs). Descubiendo
el Antiguo Oriente: Pioneros y Arqueólogos de Mesopotamia y Egipto a finales
del siglo XIX e princípios del siglo XX. Barcelona: Edicions
Bellaterra S.L., 2014, p. 39-69.
Traunecker,
Claude. Os deuses do Egito. Brasília:Unb, 1992.
Muito relevante seu trabalho sobre o que o EGITO e seu território tem a nos oferecer de sua História. Em questão o território egípcio foi e ainda e muito bem explorado e novas descobertas estão vindo a tona. Assim acreditamos que a multidisciplinaridade pode corroborar com os estudos e ampliação da história Egípcia, e este exemplo de pesquisas pode ter sucesso em nosso país, apesar da pouca valorização de nossa história?
ResponderExcluirATENCIOSAMENTE
ELOIS ALEXANDRE DE PAULA
Olá Elois, obrigada por ler meu texto. Egito antigo é um tema que não se esgota, constantemente estamos observando publicações a esse respeito. Espero que mais adiante possamos encontrar uma perspectiva nova. Abc
ExcluirPoderíamos pensar um olhar além dos egípcios em toda área de desertos que a senhora aborda na sua explanação? Poderíamos pensar que existiu civilizações desconhecidas nessa região omitidas pelos estudos históricos?
ResponderExcluirFabio Ehlke Rodrigues
Olá Fábio, obrigada por ler o meu texto! Acredito que sim, o tempo vai nos revelar outras sociedades e culturas. O uso da tecnologia aplicada por satélites está apontando outros caminhos. Abc
ExcluirProfessora, parabéns pelo trabalho!
ResponderExcluirCom relação ao texto, o que a senhora indicaria para se utilizar desse trabalho em sala de aula juntamente com o conteúdo tradicional que encontramos nos currículos atuais para exercitar a curiosidade do aluno para além do que é apresentado no livro?
Leandra Barros Galindo
Olá Leandra, boa noite! Obrigada por ler o meu texto. Penso que o uso de mapas é essencial. Podemos pensar as relações através dos filmes que se encaminham para o imaginário e representações. Através deles vários aspectos podem ser desenvolvidos. Abc
Excluir
ResponderExcluirEstudar o Egito Antigo nas areias desérticas, abriria espaço para o encontro com outras civilizações ainda não estudadas no campo historiográfico e antropológico? Teriam estas civilizações sendo ofuscadas pelo Egito?
Fábio Ehlke Rodrigues
Boa tarde, Maura, tudo bem? Parabéns pelo artigo.
ResponderExcluirPara você, o fato de o deserto ter esse viés mítico e desolador ao mesmo tempo contribuiu para que determinadas civilizações, como por exemplo a egípcia, sofressem preconceito e fossem deixadas de lado em detrimento das que compõem a chamada Antiguidade Clássica?
Ana Paula Sanvido Lara
Oi, texto esplêndido que lança um olhar diferenciado para a História do Egito antigo. Minha pergunta é sobre qual a relação entre o deserto e a religiosidade egípcia e como eles se entrelaçavam?
ResponderExcluirParabéns pela discussão trazida. Me interessa particularmente por se tratar do Ensino de História e de um tema tão cheio de "mistérios' que ainda abre espaço para tantos estudos e possibilidades. Fiquei pensando ao ler seu texto sobre as articulações do Tema Egito com a própria questão racial, tão cara em nosso país. A impressão que sempre me chegou enquanto professora da rede básica, é que o Egito parecia sempre um ponto fora da curva, uma civilização muito "endeusada" mas pouco estudada de fato. Um dia um aluno me perguntou se quem morava no Egito era negro? foi uma pergunta que me pegou totalmente de surpresa e me fez pensar também nessas injunções do debate. Agradeço muitíssimo as contribuições realizadas no seu texto.
ResponderExcluirParabéns !!!
ResponderExcluirUm texto maravilhoso! Expõe algumas curiosidades a respeito do "Egito Antigo", assunto que muito me interessa, pois além de nos remeter a descobertas de mistérios, também nos instiga a realizar pesquisas juntamente com a ajuda dos alunos na sala de aula.