ONE PIECE, PROPÓSITO HERDADO E LIBERDADE por Arthur D´Elia dos Santos e João Antõnio P. Cardoso


O presente texto visa adentrar no mundo de One Piece de modo a oferecer uma abordagem filosófica captando alguns elementos da obra. São eles: o propósito herdado, a tensão existente entre liberdade e profecia/destino. No interior desta divagação perguntas precisarão ser respondidas. Há um determinismo na obra? Qual o impacto do status ontológico do futuro para a liberdade? É possível uma saída humanista?

 

“Existem três coisas que não podem ser interrompidas: o sonho dos homens, o fluxo do tempo e o propósito herdado”. Palavras de Gol D. Roger que nos dizem muito sobre a construção do mangá/anime (nas referências será deixado um link de um vídeo do canal do Youtube All Blue sobre). Fundamentalmente, essas palavras querem dizer o seguinte: no passado havia alguém que tinha um sonho, mas não conseguiu completá-lo. Tal sonho foi adiado por muitos anos. Aqui neste segundo momento entra a ação do fluxo do tempo. Alguém no futuro irá completar o sonho passado (propósito herdado).

 

Em One Piece alguns exemplos que envolvem esta questão são visíveis, como é o caso de Zeff e Sanji (herdou propósito de Zeff) e Roger com o Reino Antigo. Um determinado propósito pode ser passado adiante por meio da oralidade ou documentos escritos. Tudo isso é importante para demonstrar que não se trata de uma escolha feita por determinado personagem devido à linhagem sanguínea ou algo do tipo, mas sim de herdar a grande finalidade de vida que outrora pertenceu a outra pessoa. Na própria história da humanidade isso aconteceu, basta como exemplo a ordem criada por Francisco de Assis que visava transparecer o “Cristo nu” (GOFF, 2011).

 

Sobre o Reino Antigo, para que aqui seja clara a dimensão do problema, ele foi a explicitação de uma civilização próspera e avançada na qual as diferentes raças conviviam sem grandes perturbações. Com a oposição de 20 Reinos ao projeto One Piece (acerca do Projeto, isso é apenas uma hipótese, mas a interpretação sobre a construção da narrativa é amplamente amparada pelos acontecimentos do anime), que nada mais seria do que a eliminação da Red Line (é uma faixa de terra que divide os oceanos) e, consequentemente, da Grand Line (o oceano que compõe a primeira parte da obra), foi criado o Governo Mundial e tudo o que envolve o Reino Antigo foi apagado, incluindo indivíduos, povos que “sabiam demais” ou buscavam informações sobre o Século Perdido (época em que o Reino antigo foi destruído).

 

O que foi deixado do Reino Antigo para levar adiante o propósito foram escritos talhados em grandes pedras conhecidos como Poneglyphs e Armas Ancestrais que viabilizariam a destruição da Red Line.

 

Breves apontamentos sobre o governo mundial

No episódio 523 do anime começa o arco da Ilha dos Tritões ou Homens-Peixe. Fala-se de como o Governo Mundial foi conivente e patrocinou a segregação e opressão de raça para com os homens-peixe, inclusive escravizando-os. Este é apenas um dos vários elementos que marcam essa organização que brotou com o fim do Reino Antigo. Entre os episódios 275-278 aparece não só o passado de Nico Robin (tripulante do bando do protagonista), como também a aniquilação de Ohara, sua terra natal, pela Marinha e a mando do Governo Mundial.

 

O Governo Mundial possui a seguinte organização: Imu-Sama é uma espécie de rei do mundo. Cinco anciões estão submetidos a ele (aos olhos dos outros são eles quem governam o mundo; desconhece-se a existência de Imu-Sama). Logo abaixo dos anciões tem o Comandante-Chefe da marinha que supervisiona os marinheiros em geral e a Cipher Pol (é uma agência secreta que realiza investigações, assassinatos e coleta de informações). Há também os Nobres Mundiais, os quais podem ser conhecidos como Tenryubitos ou Dragões Celestiais que são os descendentes diretos de dezenove dos vinte Reinos que confrontaram o Reino Antigo no passado.

 

Toda essa caracterização é importante para perceber o seguinte: em One Piece os aspectos objetivos alimentam percepções subjetivas dos indivíduos. Do processo de escravização dos homens-peixe por parte dos Dragões Celestiais brota um profundo preconceito de raça que divide humanos e tritões. A divisão geográfica proveniente da Red Line obstrui o caminho à união entre os povos e à liberdade de cada um poder navegar pelo mar sem maiores problemas.

 

Liberdade fruto da profecia ou a profecia é resultado da liberdade?

No episódio 523, Madame Shirley tem uma visão na qual Luffy envolto a chamas destrói a ilha dos tritões. No arco da ilha dos homens-peixe, diz-se que Shirley nunca errou uma previsão; inclusive algo que ela previu não necessariamente vai acontecer num futuro próximo, mas pode ser num futuro um pouco mais distante. Ora, com a destruição da Red Line, não só a Terra Sagrada de Mary Geoise na qual habitam Dragões Celestiais, como também a ilha dos tritões. Trata-se do fim do Governo Mundial tal como se apresenta.

 

Essa previsão da tritã juntamente com o amanhecer ou alvorecer do mundo esperado pelos Kozukis e pela tribo Mink demonstra que em One Piece a ideia de profecia ou destinação aparece. Para reforçar isto tem também a profecia de Toki (envolvendo a libertação do país de Wano) revelada por Kyoshiro no episódio 909: “Você é como a lua que desconhece o amanhecer. Se há um desejo ardente que deve ser cumprido, será quando nove sombras forem tecidas juntas por vinte anos de noites de luar. Só então você entenderá o esplendor do amanhecer”.

 

Toki nasceu há cerca de 830 anos atrás, ou seja, durante o Século Perdido. Ela viajou pelo tempo diversas vezes usando o poder de sua Akuma no Mi chamada “Toki Toki no Mi”. As Akumas no Mi são misteriosas frutas que concedem poderes aos seus usuários. O interessante é que Toki não viaja para o passado, mas sempre foi para o futuro. Isso comprova como em One Piece o passado não possui estatuto ontológico, ou seja, não “existe” em algum lugar para onde se possa voltar. Aqui respeita-se o fluxo do tempo como algo que não pode ser interrompido e, consequentemente, a irreversibilidade como categoria da realidade.

 

No entanto, a viagem para o futuro abre a possibilidade de não haver margem para a liberdade (no sentido de livre-arbítrio) entre os indivíduos, ou seja, a escolha entre alternativas (que implica tomar o destino em suas mãos e fazer sua própria história). Só que no episódio 67, Nico Robin aparece pela primeira vez e tenta ajudar o bando pirata dos chapéus de palha indicando um caminho mais seguro para Alabasta, visto que poderiam encontrar muitos inimigos à frente. Luffy simplesmente rejeita a ajuda e diz que ele é quem decide os rumos do navio. Em outras palavras, o protagonista quer realizar a escolha entre alternativas e decidir o seu destino, bem como de seu bando.

 

Claro que se poderia indagar “Mas e se essa ação do Luffy já não for parte de um destino, por mais que ele queira afirmar ser livre?”. Ainda assim o próprio personagem refutaria isso, pois o mesmo quer se tornar o Rei dos Piratas e, com isso, ter a maior liberdade do mundo, podendo viajar livremente pelos mares (algo que somente seria possível com a já mencionada derrubada do Governo Mundial). Mas... qual a resolução dessa tensão entre profecia/destino versus liberdade?

 

Bem, esse desfecho ainda poderá ser melhor explicitado com o fim da obra (One Piece). A princípio é possível refletir qual seria o resultado desta contradição e se o anime vai caminhar para uma saída humanista. De um lado tem toda uma profecia, inclusive prevista por uma tritã e do outro temos o principal responsável pela mesma “cagando” para essa coisa de destino e querendo se afirmar enquanto agente de sua própria história.

 

Jasão e o mito do herói solar

Se há algo que caracteriza uma história como a de One Piece em comum com outras grandes epopeias de sucesso, é a ideia de um protagonista ou conjunto de protagonistas que trava(m) um confronto do qual não faz(em) parte apenas como indivíduo(s), mas também como parte de uma coletividade que transcende seus interesses imediatos.

 

Eis a fórmula a que denominamos a jornada do herói. Mais do que isso, é uma forma de contar uma história que inspira os jovens e que tem como mote o arquétipo do herói solar: um tipo de aventureiro que se torna o centro dos acontecimentos de um mundo muito mais complexo ou que pelo menos se torna um “sol” para um grupo de prodigiosos companheiros, que evoluem como força harmônica e são capazes de vencer desafios aparentemente muito maiores do que eles.

 

Um dos (inúmeros) mitos que se aproximam do mundo imaginado por Eiichiro Oda é o do Jasão e os argonautas. As semelhanças são tantas que, tendo ou não se inspirado nessa extraordinária narrativa do herói grego, precisam ser notadas. Em ambos temos um protagonista que reúne companheiros para cumprir uma missão, zarpam em um navio, enfrentam criaturas fantásticas que aparecem no mar e seres com poderes sobrenaturais que planejam impedir o avanço dos bravos aventureiros. É igualmente notável que, se para Jasão a inexperiência e o fato de ainda não ter feito seu nome uma lenda torna surpreendente o reconhecimento de sua liderança por guerreiros tão poderosos como Hércules, Teseu e até mesmo alguns semideuses, da parte de Luffy suas limitações de inteligência e em outras habilidades para além da luta contrastam com o valor que ele projeta sobre o companheirismo e, portanto, o orgulho que ele carrega em valorizar o papel que cada um pode desempenhar.

 

Em outras palavras, em ambos casos a figura do herói solar é possível justamente porque tratam-se de indivíduos limitados, mas que movem montanhas graças às suas capacidades de combinar esforços. E por que isso seria relevante para discutir as noções de justiça e liberdade que o anime apresenta? Vejamos: o personagem principal em cada uma dessas lendas representa, por um lado, a antítese do salvador solitário e, por outro, da atitude vilanesca que consegue o que quer por meio da manipulação dos outros (STEPHANIDES, 2016). Os motivos que orientam um teor ético por trás do desdobramento dos acontecimentos em cada uma das obras são diferentes. Para Jasão – especialmente aquele representado por Menelaos Stephanides (2016) – geralmente a complementaridade entre os tripulantes é interpretada simultaneamente como sinal da fraqueza humana e da capacidade de superar desafios por meio da união entre eles. O conto dos argonautas evoca na mitologia grega a era dos heróis, uma fase nostálgica do nosso passado em que as virtudes do guerreiro compensavam já um relativo afastamento dos deuses. Ou seja, éramos obrigados a lutar, mas haviam aqueles que o faziam com honra e por isso recebiam a bênção das divindades.

 

Ao contrário dos argonautas, os mugiwaras (plural de “chapéu de palha” em japonês e a designação coletiva para o bando de Luffy) são representantes de um imaginário popular moderno e em específico de um autor que – tudo indica – não tem intenções de prestar homenagens aos deuses e tampouco de impor limites às capacidades humanas de resolver seus próprios problemas. Pelo contrário, One Piece é sobre o que as pessoas podem fazer para determinar seus próprios destinos.

 

Por conseguinte, não há limites para o que podemos alcançar com nossas ambições. A ideia é que nada que seja correto deve ser imposto. O sentido ético da trama passa pela orientação subjetiva dos protagonistas. Ou seja, ninguém ali deveria fazer algo porque deve. Não há uma moral externa imposta por autoridades de cunho sobrenatural. Ao invés disso há uma insistente tentativa de desmitificar todo tipo de autoridade que se intitula como tal (IZZOMBIE, 2020). Há, sim, o reconhecimento daqueles que deveriam ser vistos como reis. Mas esse reconhecimento não se sustenta senão pelo apoio popular.

 

O rei está nu. Esse é um dizer tão comum que faz parte de uma anedota sobre a qual que poucas vezes refletimos. No capítulo 213 do mangá (ou episódio 128 do anime), o monarca de Alabasta abaixa a cabeça para os piratas que acabaram de salvar seu reino e, após ser questionado sobre isso, justifica: “O poder é algo que se veste sobre a roupa. Mas estamos no banho. Um rei nu não é um rei. Como pai… e como cidadão desse país… eu sou muito grato a todos vocês”. Antes de poder assinalar um gesto de submissão, tal postura demonstra o sentimento de igualdade entre um membro da mais alta nobreza do Governo Mundial e um infame grupo de criminosos.

 

O reconhecimento da autoridade retira do rei um status permanente de ser intocável, de alguém que se sobrepõe aos demais e determina seus destinos. Inverte, portanto, a tradicional lógica teísta do poder soberano: o poder não emana de um ente sagrado que nasceu para ocupar o trono, como querem fazer parecer os Dragões Celestiais. O poder emana do povo. E para demonstrar isso Oda emprega o arquétipo do herói solar ao representar um grupo que, partindo da escória da civilização em que o anime se passa, se eleva ao ponto de se tornarem os representantes da união de todos os povos, de todas as raças e da luta contra a opressão por aqueles que vestem o poder (ao invés de serem investidos de uma condição de eleitos que diz que o rei existe para o povo e não o contrário).

 

Conclusão: afinal, meu destino está traçado?

O futuro enquanto algo que possui um status de existência certamente, e essa é a lógica, jogaria a ideia de destino como fator fundamental em One Piece. Bom, pelo menos essa seria a regra. No entanto, quando Luffy diz que quer ser o sujeito mais livre do mundo ao se tornar rei dos piratas, não só está desconsiderando toda a profecia que se conta como também vai findar (aqui tomando a imagem profética como correta) a possibilidade de limites não só objetivos estabelecidos pelo Governo Mundial como, por exemplo, envolvendo a Red Line e todo o nó atado em volta dos interesses dos dragões celestiais (que inclusive impede que todos os outros indivíduos sejam livres), mas também subjetivos: retirando o preconceito de que existem raças inferiores ou a segregação.

 

O que se pode tirar dessa tensão entre destino e liberdade é que os chapéus de palha precisam derrubar o Governo Mundial se quiserem ser donos de suas próprias histórias e realizar seus sonhos. Ou seja, a cadeia determinística somente findará quando aquela organização que colocou obstáculos que restringem a liberdade das pessoas acabar. Até o momento no anime/mangá não se diz (e aqui arriscamos dizer que na obra esse tipo de coisa não será dito) que o Reino Antigo estava destinado a ruir, mas sim que Luffy junto aos seus companheiros estão destinados a extirpar a atual forma de configuração do mundo. Isso significa que a liberdade é resultado da profecia, porém no passado a segunda foi produto da primeira.

Portanto, a dialética de agora caminhará para o derradeiro fim de um mundo dominado por “deuses” ou no fim das contas, deus (Im-Sama); que carregou consigo uma longa narrativa e previsões direcionadas a um destino. O que virá depois disso será a mais profunda leveza de se escolher qual alternativa seguir sem que isto seja inconscientemente pré-determinado. A aposta aqui é de um final humanista em One Piece.

 

Referências

Arthur é mestrando em filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

João é graduado em ciências sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais

 

Mary Geoise. Disponível em: https://onepiece.fandom.com/pt/wiki/Mary_Geoise?so=search.

Alvorecer do Mundo. Disponível em: https://onepiece.fandom.com/pt/wiki/Alvorecer_do_Mundo.

Cipher Pol. Disponível em: https://onepiece.fandom.com/pt/wiki/Cipher_Pol.

Nobre Mundial. Disponível em: https://onepiece.fandom.com/pt/wiki/Nobre_Mundial.

Governo Mundial. Disponível em: https://onepiece.fandom.com/pt/wiki/Governo_Mundial.

Kozuki Toki. Disponível em: https://onepiece.fandom.com/pt/wiki/Kozuki_Toki.

Akuma no Mi. Disponível em: https://onepiece.fandom.com/pt/wiki/Akuma_no_Mi?so=search.

Monkey D. Luffy. Disponível em: https://onepiece.fandom.com/pt/wiki/Monkey_D._Luffy.

IZZOMBIE. O anti-autoritarismo de One Piece. 2020. Disponível em: https://dentrodachamine.com/2020/06/23/o-anti-autoritarismo-de-one-piece/.

GOFF, Jacques Le. São Francisco de Assis. Ed. 10. Rio de Janeiro: Record, 2011.

STEPHANIDES, Menelaos. Jasão e os Argonautas. Ed. 4. Primeira Edição Digital: Odysseus, 2016.

18 comentários:

  1. Olá, Arthur e João.
    Sou Nicolas Couto Neto Corrêa, resido na cidade de Nova Friburgo e curso Licenciatura em História pela UNIRIO através do consorcio CEDERJ.
    Amo One Piece, pois é uma obra riquíssima quando se diz respeito a busca pela realização dos Sonhos, a importância da liberdade, da identidade individual e coletiva, bem como a luta contra a opressão.
    Ao estabelecer elementos e regras que apontam para a existência de um destino traçado, principalmente também devido a condução da narrativa da jornada do herói e a construção de Luffy como um herói solar, Echiro Oda realmente nos leva a um paradoxo onde a busca pela total liberdade é condicionada pelo destino do protagonista ao herdar o proposito de Gol D. Roger e ser o usuário de uma Akuma no Mi extremamente especial e valiosa para as figuras de maior poder daquele mundo que nos foi apresentado.
    Ao ler o texto pude refletir bastante acerca desse tema e da proposta humanista defendida por vocês acerca do fim do Mangá/Anime (A qual a propósito, sou bem adepto devido ao rumo ao qual essa estória caminha), porém me pergunto se o autor não estaria preparando uma quebra de expectativa quando o próprio Luffy se ver confrontado com a ideia de que ele está seguindo um destino pré-determinado ao invés de se guiar pela sua própria vontade e liberdade pessoal. O que diriam vocês acerca disso ?

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    1. Olá, Nicolas. Fico feliz por você ter gostado do texto e aqui comentado. Sobre sua pergunta, João e eu pensamos bastante nessa possibilidade. Inclusive no texto colocamos essa tensão que existe entre dentino e liberdade envolvendo Luffy.

      Olha, se o Oda não for pelo caminho que colocamos no texto, nossa previsão aqui feita estaria errada. O que fizemos foi dar uma "arriscada" acerca do futuro de One Piece. Hahahah. Esperemos que nossa teorização esteja correta.

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    2. Boa tarde, Nicolas! Permita-me também dar uma "palhinha" (ou um chapéu de palhinha) nesse assunto.

      O que eu penso? As estórias produzidas no Japão fazem parte de uma narrativa mítica a que muitos chamam de jornada do herói. Não quero com isso dizer que tal tipo de jornada corresponda exatamente ao que Joseph Campbel diz sobre isso, até porque estamos falando sobre particularidades da cultura oriental e mais especificamente de um país. Mas que os mangás hoje se enquadram numa forma contemporânea de reproduzir "mitos" e que nesse sentido eles têm um papel a cumprir na sociedade.

      No caso, o mangá e o anime de One Piece espelham valores de nossa época e que são amplamente ensinados no Japão. Ou seja, quando Eichiro Oda utiliza símbolos e mitos em sua obra, ele utiliza uma linguagem para passar uma mensagem.

      Pensar One Piece sob uma lógica da mitologia contemporânea é importante pra gente ter em mente que muita coisa ali é "perfomática" e figurativa. Ou seja, trata-se de uma maneira de comunicar algo que não precisa ser literal. Enfim, não precisamos nos ater às formas para pensar se Luffy é livre ou não.

      Luffy é livre porque repete as coisas que Roger disse. Esse é o recado que Oda quer nos passar. Mas o que isto quer dizer? Que toda esse confronto entre destino e liberdade que o anime estabelece tem sua saída justamente na profecia.

      Então, numa linguagem mítica, a profecia se cumprir faz com que a liberdade se cumpra. E isso acontece porque é isso que as pessoas querem. Esse é o sentido da frase do Roger: "Determinação herdada, o destino dessa era e o sonho das pessoas. Enquanto as pessoas continuarem buscando o sentido da liberdade, tudo isso jamais deixará de existir".

      Além do mais, os mugiwaras não repetem exatamente o que os piratas Roger fizeram. Cumprir o propósito herdado é a maneira de sermos livres. E além do mais cumpre o propósito herdado quem quer.

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  2. Primeiramente gostaria de parabenizar os autores Arthur e João pelo excelente texto!

    Seguindo a lógica do anime "one piece" onde o ator principal trabalha, até então, com a ideia de companheirismo, valorizando cada um de seus companheiros e suas respectivas habilidades, para além de questões sobre a fome, trabalhadas no anime podemos dizer que one piece possui um viés revolucionário? Em uma futura (breve) revolução comunista
    quais pontos/ questões tratadas no anime vocês colocariam como cruciais para a culminância da revolução?
    One piece é o melhor anime ❤️

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    1. Olá, Yasmin. Acredito que possua esse viés sim. Inclusive se pegar a ênfase dada à ideia de liberdade. Sobre sua segunda pergunta, acho que o ímpeto pela liberdade, contra fome, a importância do apoio das massas e a posse de armas seriam tais elementos.

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    2. Yasmin, boa noite! Também permita-me opinar aqui.

      Eu costumo dizer que One Piece não é um anime sobre piratas e, sim, sobre revolução. Não seria exatamente um anime que tem foco numa perspectiva comunista de transformação, mas ainda assim toca o tempo inteiro em diversos aspectos que estão relacionados à luta de libertação popular.

      Um deles é o próprio protagonismo dado à luta das pessoas comuns na obra. Como pode ser lido no texto "O anti-autoritarismo em One Piece", em momento algum os protagonistas ou a narrativa do mangá reprova(m) as pessoas que se organizam como resistência contra um poder opressor. O que acontece é que os mugiwaras agem para desvelar grandes conspirações realizadas por atores poderosos que podem sim se direcionar contra reis. Mas aí o que Oda aponta portanto não é que a resistência popular não tivesse direito de se rebelar e sim que as pessoas não tinham conhecimento de quais seriam seus verdadeiros inimigos. Esse é o caso de Alabasta.

      Tanto é assim que o arco de Dressrosa é uma das melhores construções narrativas do que seria uma revolução. Nele o autor arrumou uma maneira muito inteligente de desdobrar uma revolta popular que se asssemelha a uma panela de pressão estourando, utilizando os bonecos que se mexem e sua relação aparentemente pacífica com os humanos para causar a impressão inicial de que tudo estava aparentemente bem. É graças à ação de Ussopp que todo o esquema de dominação do Doffy é revelado e as pessoas conseguem recobrar suas memória e sair do estado de "alienação" para organizar uma insurreição contra o rei impostor.

      Só aí você vê quantos elementos interessantes foram abordados. E você pode acompanhar esses elementos libertários na construção de mundo de One Piece o tempo todo e até mesmo alguns elementos relacionados à organização social como a valorização da harmonia sobre a prosperidade e da paz sobre a guerra.

      Em One Piece, apesar de haver um certo foco sobre o "banditismo social" (conceito de Hobsbawn) dos mugiwaras, a ação das pessoas é supervalorizada. Então há um foco sobre a ideia de que a solidariedade mútua permite a prosperidade e é o que faz com que nós sejamos livres. Apesar de não ser um anime exatamente "comunista", a atitude claramente generosa de Luffy é algo que se manifesta o tempo todo em vários momentos em que o mesmo desiste dos tesouros conquistados e até mesmo na construção do mito de Joyboy, pois imagina-se que no futuro um herói libertador irá compartilhar suas riquezas e dividir saquê com o mundo inteiro em uma festa de fraternidade.

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  3. Oi Arthur e João! Que texto bacana! Tenho duas questões: vocês percebem alguma diferença na construção do sentido de liberdade entre o o mangá e o anime? Essa tensão entre liberdade e destino não remontam a ideia taoista de responsabilidade pelas suas ações? Obrigada
    Janaina de Paula do Espírito Santo

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    1. Olá. Obrigado pela pergunta! Eu particularmente não vejo tanta diferença em termos narrativos do anime para com mangá. Diferenças estéticas Certamente existem.

      Agora, sobre sua segunda pergunta, creio que a tensão entre liberdade e destino tem muito mais a ver, aqui tentando uma analogia, com o conflito entre o ideal iluminista para com aquele católico medieval que já pressupunha que temos já de certo modo algo pré-determinado acerca de nosso futuro

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  4. Faço minhas as palavras do Arthur! Quanto à questão do taoísmo, eu entendo que tal doutrina oriental compreendia a existência de um caminho "natural" além do qual governantes seriam negligentes ou tirânicos. O Tao Te Ching fala de uma não-ação no sentido de que você tem que seguir o fluxo das coisas. Ou melhor, a ação precisa ser ordenada por esse fluxo "natural".

    Vejamos: eu não vejo isso em One Piece. Há no taoísmo a ideia de que cada um faz sua parte para alcançar o fluxo correto. Mas isso não há em One Piece: é um mangá de viés bem revolucionário e, portanto, os protagonistas interferem bastante na vida coletiva. Evidentemente não o fazem de maneira tirânica, mas geralmente salvando as pessoas de tiranos ligados à pirataria ou ao Governo Mundial.

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  5. Bom dia! Primeiro gostaria de parabeniza-los por essa comunicação maravilhosa, sou uma grande fã da obra.

    Na história, podemos observar que a inicial D. é passada para os filhos e, um dos Gorousei revela que o sobrenome D. indica perigo. Contudo não sabemos seu real significado, apenas temos uma pista revelada durante a batalha no arco de Marineford, no qual, Barba Branca, alguém que conhece o significado do D, diz que matar alguém com um D. em seu nome não encerraria o conflito atual, pois outra pessoa simplesmente herdaria e seguiria a vontade dessa pessoa, sugerindo uma ligação entre a vontade de D e testamento herdado.
    A vontade herdada, pelo que podemos entender é a ideia de que as pessoas passarão seus sonhos e ideais para as gerações futuras, permitindo que seus desejos sejam realizados mesmo após a morte.
    Quanto mais pensamos sobre isso, a teoria da reencarnação faz sentido. Sendo assim, além das questões as quais a Yasmin citou sobre um viés revolucionário/social que podemos notar com One Piece, gostaria de saber se é possível estabelecer uma discussão com a narrativa sob a perspectiva da História das Religiões, tendo em vista o folclore presente e os fenômenos cíclicos que se renovam com a vontade de D.?

    Assinado: Alexia Henning

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    1. Olá. Obrigado pela pergunta! One Piece é o melhor anime. Hahahah.

      Bom, vc falou bem sobre o propósito herdado. Acerca de sua pergunta, Oda tem muitas referências à bíblia ao longo da obra, por exemplo. A mitologias também. Certamente diversas religiões influenciaram.

      Agora, sobre os D, creio que para que os "ciclos" se renovem, é necessário que a pessoa que leva determinada vontade, sonho adiante, precise concordar com aquilo. Precise escolher lutar por aquilo. Então nesse sentido pressupõe a escolha. Claro que na obra a coisa do destino e pré determinação é forte, mas ela está em tensão com a livre escolha.

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    2. Poxa, Alexia! Que pergunta boa! Gostei tanto que, mesmo sabendo que Arthur já destrinchou o assunto, não resisto a fazer um comentário.

      As referências religiosas em One Piece são uma constante. Sobre essa questão dos D., uma das teorias interpreta tal sobrenome como significando a meia lua. Em One Piece há constantemente referências ao sol, à lua e ao amanhecer como símbolos ou metáforas de uma mudança de era.

      Como você com certeza sabe, diversos povos antigos observavam os céus e daí tiravam interpretações sobre a passagem do tempo que correlacionavam com a sorte e com seu destino. Ou seja, são poucos os povos que fizeram a separam entre religião, cosmogonia e filosofia social. Aquilo que observamos para o Universo vale para as nossas vidas.

      Isso, inclusive, serve para retomarmos a discussão sobre filosofia oriental. Seja o Tao do taoísmo, o dharma do hinduísmo ou o karma do budismo... o que temos são diversas definições sobre como interagimos com uma ordem maior sem ir contra seus princípios.

      Tudo bem. One Piece não vai exatamente por aí. Mas a metáfora dos ciclos está aí. E isso tanto é verdade que os Supernovas (que têm um canal no Youtube) identificaram um padrão de aparição de formas da luta ao final dos arcos que parece indicar um movimento de ascensão e queda na sorte dos personagens principais. A menção está no link a seguir, caso tenha interesse em dar uma olhada: https://www.youtube.com/watch?v=og2GGtN0W6M.

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  6. Parabenizo os autores pelo artigo. Cresci envolto da cultura japonesa, animes e mangás eram (e ainda são) um dos meus hobbies favoritos. A impressão que tenho é que o contato com obras culturais de outros países ajuda a desconstruir preconceitos e estereótipos que são difundidos sobre os mesmos. Tenho duas perguntas que se relacionam: Vocês enxergam a obra One Piece dentro dessa perspectiva potencializadora de desconstruir preconceitos e estereótipos em relação a cultura oriental? Vocês consideram que as dublagens e adaptações dos animes em geral carregam algum traço de orientalismo?

    Yuri Alan Maciel Tesch

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    1. Bom dia, Yuri! Para a primeira eu penso que, geralmente, animes e mangás são uma via de mão dupla. Se, por um lado, revelam aspectos da cultura japonesa que muito atraem os fãs, por outro podem acabar esteriotipando ainda mais essa cultura.

      Tudo isso a gente pode pensar a partir de estudos de recepção dentro do campo da comunicação. Ou através de um estudo das "lentes" pelas quais vemos o mundo. Afinal, para um ocidental que apenas vê animes a cultura ocidental por parecer exatamente aquilo. É como um europeu que olha para o carnaval brasileiroe desconhece todo o moralismo conservador que há por trás daquela aparente liberalidade. Em suma, são facetas culturais diferentes de um mesmo povo que muitas vezes não conseguimos apreender apesar da imagem que seus autores passam a partir das criações artísticas.

      Dito isso, é difícil opinar especificamente sobre o caso de One Piece. É uma obra ao mesmo tempo bastante japonesa mas bastante universal. Em termos de estilo explora bastante o bizarro nos traços dos personagens e na narrativa segue um padrão que é ao mesmo tempo próximo da fórmula shonen e de grandes epopeias de aventura como Star Wars e romances de Júlio Verne.

      Ou seja, é uma experiência profundamente enriquecedora mas que não deixa de se delinear por algumas mensagens que a editora Shonen Jump quer passar ao público japonês. E ao mesmo tempo também é um produto vendável e nesse sentido acaba trazendo alguns aspectos da indústria cultura nipônica que, inclusive, me incomodam bastante.

      Enfim, desculpe-me se minha resposta não é conclusiva. É algo difícil de se dizer. Há sem dúvida um potencial de quebrar preconceitos, mas tudo depende muito da sua experiência de leitura ou acompanhamento do anime e do tipo de imersão que você faz.

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    2. Quanto à questão do orientalismo, sem dúvida as adaptações dos animes carregam com muita clareza traços de orientalismo. Quanto às dublagens, é mais difícil dizer. O trabalho da dublagem envolve uma certa adaptação para a cultura que irá receber essa informação. Ou seja, a introdução de expressões e gírias brasileiras na dublagem de animes é algo esperado e necessário para traduzir a linguagem coloquial presente na versão original.

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    3. Olá, Yuri. Então, penso que One Piece ajuda sim a descontruir certos estereótipos, mas muito mais do que isso, ajuda a criticar os próprios preconceitos orientais, como com relação às mulheres.

      Sobre as dublagens, eu particularmente acho excelente. Muitas vezes melhor do que o original em japonês.

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  7. Parabéns pelo trabalho meninos! Nunca pensei que poderia ver um artigo cientifico sobre One Piece!

    Comecei minha jornada com os Mugiwaras desde 2019 e agora estou acompanhando o semanal faz um tempo. O universo que o Oda criou é extremamente denso e você realmente sente que ao virar cada página que aqueles personagens não estão presos somente a boa indole do leitor para continuarem suas rotinas.

    Dito isso, achei espetacular a forma como vocês utilizaram o sistema politico com as novas informações sobre o Imu que estamos recebendo. O ciclo que vemos do Luffy entrando numa ilha, tomando ciência da opressão que aquela sociedade sofre de alguma forma, pra então mudar a realidade deles com o carisma dele por motivos de só porque sim é fascinante, diz muito sobre como o sonho de liberdade do Mugi-chan influência as ações dele e como o Gear 5th representa essa necessidade de liberdade que ele tem.

    O tema de liberdade acredito que venha muito da experiência que o Oda teve enquanto membro da sociedade japonesa que cresceu num país que trabalhou tanto pra se reerguer depois da 2° Guerra Mundial.

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