Pensar
história e historiografia do Antigo Oriente Próximo não é tarefa fácil, mas nos
últimos anos, o desafio tem sido aceito por diversos historiadores, entre eles
Mario Liverani, Joaquín de Sanmartin, Guilhermo Algaze, Kátia Pozzer, entre
outros. Essa mudança de olhar, para as culturas antigas, se deve a recusa de
apenas descrever aquilo que temos devido às descobertas arqueológicas e
traduções dos tabletes de argila, em nome de uma história mais plural, aquela
iniciada por Annales no início do século passado.
Dentro
dessa mudança de olhar ou de paradigmas explicativos da realidade, está pensar
o ofício do historiador e as questões de nossa temporalidade e a partir deles
os objetos os quais nos debruçamos, por vezes durante toda nossa vida, uma
busca contínua das pegadas dos seres humanos de outro tempo e daquilo que nos
separa deles.
O
tempo aparece então como medida de tudo, do marco onde se inicia a pesquisa, do
passado sob o qual nos voltamos, da distância que nos aproxima e nos afasta
daqueles atores sociais cujos rostos muitas vezes não podemos reconstruir e
cuja atuação se encontra envolta em lacunas documentais e na própria percepção
do tempo, que se constitui como agente e meio pelo qual a pesquisa se
desenrola.
Assim,
tempo também é um lugar-comum ao ofício, ao objeto, aos discursos e as falas
tanto do historiador como da temática sob o qual construímos nossas narrativas.
A medida de tudo é o tempo, aquele onde a pesquisa se desdobra e aquele
pressuposto pelo historiador. Tempo-lugar, tempo-identidade, tempo-memória,
tempo-relato e relatos do tempo que se (re)constrói às margens de nossa própria
temporalidade.
No
início de seu livro, François Dosse ao abordar a narrativa criada pelo
historiador, diz que: “a intervenção do historiador pressupõe fazer lugar ao
outro mantendo a relação com o sujeito que fabrica o discurso histórico. Com
relação ao passado, ao que desapareceu, o historiador ‘supõe’ um
distanciamento, que é o próprio ato de constituir-se como existente e pensante
hoje” (DOSSE, 2009, p.26), o outro nesse caso é o ausente, o morto, como diria
Michelet, ou seja, o objeto do historiador.
Fazer
o lugar ao outro é restituir-lhe o papel no contexto social no qual este viveu,
mas essa reconstituição nunca é total, ela é sempre orientada pelo lugar que o
historiador ocupa nos conflitos de seu tempo e em seu próprio lugar social.
Fazer o lugar ao outro pressupõe um em meio a tantos olhares sob o mesmo
objeto, uma (re)configuração narrativa por parte do historiador, uma vez que há
uma aproximação entre sujeito e objeto, uma relação quase íntima.
Quase
porque o historiador supõe um distanciamento, se posiciona em seu próprio
tempo, assim de um lado está quem fabrica a história, com a urgência e questões
de sua época, do outro, o morto esperando para falar uma vez mais e se calar
para sempre (MICHELT apud CERTEAU, 1982).
Nesse
sentido “o lugar do historiador se encontra ao mesmo tempo em oposição externa
com relação a seu objeto, em função da distância temporal que o distancia dele,
e na situação de interioridade pela implicação de sua intenção de conhecimento”
(CERTEAU, 1982, p. 17). E essa intenção de conhecimento quando nos referimos às
culturas da Antiguidade deve necessariamente passar pelas formas como os
autóctones gerenciavam e viviam suas percepções de tempo.
Daí
ao abordarmos sociedades antigas, como é o caso da Mesopotâmia, termos que
criar categorias ou marcos em relação à datação. Não apenas em relação àquele
que o historiador se situa, ou aquele da narrativa historiadora, mas pensar a
temporalidade dentro dessa sociedade. Em consequência disto, nos vemos sob dois
marcos referenciais, a datação interna e a externa.
A
primeira diz respeito aos parâmetros “de segmentação e medidas de tempo usadas
dentro de determinada cultura, pelos portadores desta” (SANMARTIN, 2008, p.
16), a segunda se refere a nossa forma de contabilizar o período, e como
aplicamos isso a nossa análise.
Nas
línguas sumérias e acádias, não existe um vocábulo que possam corresponder de
forma unívoca a “tempo”, “passado”, “presente” ou “futuro” tal qual o
conhecemos e percebemos na atualidade, a literatura nos textos da Antiga
Mesopotâmia se refere a “dias”. Muitos textos, principalmente os literários
eram iniciados com a frase “naqueles dias”, não tendo, portanto, uma diferença
distintiva entre passado e futuro. Em relação à vida econômica se referiam a
meses e anos. Além disso, não havia nada parecido com “história” ou “mito”, no
entanto, existia o verbo “recordar”, no sentido de lembrar-se de algo ou de
alguém, mas este pode ter também o significado de pensar ou compreender algo.
Deve-se
considerar também a ideologia presente na documentação, nela percebe-se que o
passado era apresentado como causa e fundamento do presente, o que possibilitou
segmentos distantes, de longa duração, algo parecido com nossas “eras” e “períodos”
(SANMARTIN, 2008, p. 16). Nesse sentido, Sanmartin destaca que:
“junto
a esta memória longa, existiu sempre na Mesopotâmia a visão de passado como
garantia política, jurídica e econômica do presente, uma visão prática,
concreta, do acontecido no mundo das relações políticas, dos negócios, das
heranças, e, em geral de tudo o que tange a engrenagem social” (SANMARTIN,
2008, p. 17).
Dessa
forma, a contagem do tempo nessa sociedade, esteve relacionada às formas de
interação social e a legitimação de um passado sempre presente, principalmente
nas narrativas mitológicas, rememoradas e reencenadas em momentos específicos
do calendário. Isto porque para a sociedade mesopotâmica havia a crença de que
presente e o futuro dependiam do passado, o único realmente importante, uma vez
que o porvir e o agora eram produtos destes.
Esse
marco cronológico também teve estreita ligação com as questões religiosas, onde
o devir era obra dos deuses, das decisões destes. Como apontou Joaquin de
Sanmartin: “A história, na Mesopotâmica, é sempre obra dos deuses que
decretaram seu discurso. Daí a importância do passado, já que todo
acontecimento presente sem exceção, provem de um prévio ato de vontade de um
deus” (SANMARTIN, 2008, p. 17).
Assim,
a utilização do pretérito é utilitária, ela explica ou justifica o presente. A
contagem das épocas nessa sociedade não se realizava em forma de uma sequência
numeral, os anos eram contados, principalmente na primeira metade do terceiro
milênio por meio dos anos de governo do soberano, mas essa forma de contagem
foi abandonada posteriormente, pois não havia como determinar o tempo em
documentos mais antigos.
Na
metade do III milênio, ao sul, os anos foram nomeados como se fossem coisas,
não números, o nome do ano consistia na menção de um acontecimento importante
ocorrido no ano anterior, por exemplo: “Ano 1: Amarsuena começou a reinar; Ano
2: O rei Amarsuena arrasou a cidade de Arbil[...] Ano 3: Ano que posterior ao
(ano chamado): ‘Destruição da cidade de Girtab’” (SANMARTIN, 2008, p. 20-21).
Quando não havia acontecimentos importantes se nomeava o ano de acordo com o
evento ocorrido no ano anterior.
Na
Antiga Mesopotâmia, a documentação disponível, principalmente textos e gêneros
literários (presságios históricos, pseudobiografias, maldições) revelam uma
tentativa de entender e domesticar o passado, segundo Joaquin de Sanmartin, “o
que poderíamos chamar de ‘uma história vista de dentro’” (SANMARTIN, 2008, p.
17). Relacionada a religião a mentalidade mesopotâmica sempre entrelaçará a história,
o tempo e suas crenças.
Já
na Assíria o ano teve nomes de personagens importantes e não de acontecimentos,
algo que se aproxima da nomeação de ruas em nossa época. Os anos eram divididos
em meses e dias, geralmente estavam relacionados com vida concreta. Esses dados
são importantes para pensarmos a temporalidade na Mesopotâmia e sua forma de
organização da vida social. Uma sociedade não existe fora do tempo, seja ele a
duração contada por esta, aquela onde se situa o historiador ou aquela em que produz
a escritura da história.
Assim,
pensar a temporalidade na Mesopotâmia e o próprio tempo é um exercício de
categorias duplas, por um lado uma contagem exógena, criada para nos situarmos
em relação à distância que nos separa do objeto, o que convencionou chamar-se
de “cronologia absoluta”, uma vez que usamos nossas próprias formas temporais e
as pistas disponíveis na documentação, a qual relacionamos fenômenos e eventos
naturais (um eclipse, um terremoto, o dilúvio, o que compõem dados
astronômicos, arqueológicos, etc.), dado as lacunas documentais.
Por
outro lado, temos uma contagem endógena pela qual os autóctones contavam seus
períodos, a chamada “cronologia relativa”, que no caso da Mesopotâmia precisa
levar em consideração as produções em língua suméria e aquelas em acádio. Nesse
sentido, vale ressaltar que tais línguas se referem aos idiomas oficiais,
produzidos pelas classes dominantes, logo impregnados das ideologias destas.
Por
fim, ou para iniciar a escrita do passado, sob o qual nos debruçamos, passamos
à narrativa historiadora, esta se opõe ao romance, uma vez que o pesquisador
não cria as personagens (o historiador as descobre, as degusta nos documentos,
nos detalhes, no silêncio e nas lacunas das fontes) e o relato se distancia da
ficção, construindo o que Paul Recoeur denominou de “Terceiro tempo”.
Assim,
o historiador, principalmente o que trabalha com cultura, embora tenha
dificuldade em encarar a narrativa, sabe que é preciso narrar para que o outro
(o leitor) entenda, além disso, pensar o fazer histórico deve fazer parte do
trabalho historiográfico, como declarou Roger Chartier (2009), a história não
pode recursar-se a pensar-se enquanto relato e enquanto discurso, um discurso
científico, pois “reconhecer as dimensões retórica e narrativa da história não
implica de modo algum negar-lhe sua condição de conhecimento verdadeiro,
construído a partir de provas e de controle (CHARTIER, 2009, p.13)”.
Também se faz
necessário lembrar que as fontes trazem seu próprio discurso, foram elaboradas
de acordo com a ideologia de seu tempo e daqueles que a produziram. Isso vale
tanto para os documentos mais recentes, quanto para àqueles mais antigos. Em
relação à Antiguidade, por exemplo, o historiador marxista, Mario Liverani
acredita que:
“as
fontes são sempre e por definição reconstruções históricas cuja ‘finalidade
histórica nunca é pura’, mas sim política, moral, teológica, etc., é preciso
analisar a ideologia para poder conhecer a intenção original do texto e a
realidade histórica” (LIVERANI, 2006, p.12).
Para
Mario Liverani (2006) os relatos históricos continham um excesso de detalhes
destinados a convencer o público que a imagem oferecida era real, suas
proposições veem o documento como revelador de ideologias que partem de um
sistema cultural, logo de práticas e condutas cotidianas.
Nesse sentido, o
autor acredita que a história se assemelha a literatura com descrições e
detalhes que aproximariam o leitor da narrativa. Mas essa narrativa não seria
despretensiosa, ao contrário ela transmitiria as ideias de determinado grupo e
pretenderia à universalidade de seus relatos. Para Liverani:
“A
ideologia não pode ser ignorada nem nos textos antigos nem na forma em que,
como nós, estudiosos da antiguidade, interpretamos e traduzimos estes textos.
Escrever a história, ainda que história antiga, longe de ser um exercício
didático inocente está inevitavelmente influenciada pelas mudanças políticas,
por traços religiosos, políticos e ideológicos (LIVERANI, 2006, p.17)”.
Assim,
a escritura da história estaria envolta em ideologias, tanto dos produtores de
tais documentos como do historiador que labuta sobre eles e deles extrai seu
discurso. As fontes, como lembra Mario Liverani (2006), não são reconstruções
históricas, pois não possuem finalidade histórica, sua intenção é política, moral
ou outra perspectiva particular. A história para o autor, não seria algo que já
existiria ou que já teria sido reconstruída, e que deveria se aceitar
cegamente. Pelo contrário, seria um compromisso ativo que os autores antigos
assumiram de acordo com suas próprias necessidades, não com as nossas
(LIVERANI, 2006, p. 49).
Os
documentos produzidos na Antiga Mesopotâmia trazem, além do discurso
ideológico, as práticas de pessoas comuns, envolta em silêncios e presentes na
documentação muitas vezes de forma lacunar. Mesmo em contextos onde a escrita
ainda não havia sido plenamente desenvolvida, a cultura material atesta as
representações coletivas e individuais, por meio da iconografia, da arquitetura
e das mudanças na paisagem.
Dessa
forma, torna-se essencial discutir os conceitos tempo, ideologia e do próprio
fazer histórico e relacioná-los às temporalidades e culturas sobre a qual nos
debruçamos. E hoje, a Antiguidade exige muito mais de nós historiadores, ela
pede que o olhar contemple o passado e os conceitos com os quais já foi
escrito, que revisitemos nossos clássicos e questionemos se as teorias que
foram/são usadas dizem realmente algo sobre nossos ancestrais e/ou sob nós
mesmos. A História da Antiga Mesopotâmia busca seu lugar ao sol, ao menos na terra brasilis.
Referências
Dra.
Simone Aparecida Dupla é pesquisadora na área de História Antiga, com ênfase
nas culturas do Antigo Oriente Próximo.
CHARTIER, Roger. A história ou a leitura do tempo. Tradução de Cristina Antunes. Belo Horizonte: Autêntica Editora,
2009.
DOSSE, François. Paul Ricoeur-Michel De Certeau:
la historia entre el decir y el hacer. Buenos Aires: Nueva Visión,
2009.
LIVERANI,
Mario. Mito y politica en la historiografia del Próximo Oriente Antiguo. Barcelona: Bellaterra, 2006, p. 49.
CERTEAU,
Michel de. A escrita da história.
Tradução de Maria de Lourdes Menezes ;*revisão técnica [de] Arno Vogel. – Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 1982.
SERRANO,
José M.; SANMARTIN, Joaquín. Historia Antigua del Próximo Oriente: Mesopotâmia
y Egito. Madrid: Akkal, 2008.
Prezada Simone Aparecida Dupla,
ResponderExcluirdesde já gostaria de deixar aqui meus cumprimentos pela comunicação.
De fato, esta relação entre história antiga e noções de tempo(ralidade) muito me interessa. Desde abordagens da filosofia da história – como Ibn Khaldūn e Giambattista Vico – até autores do século XX E.C. – nomeadamente Mircea Eliade –, o esforço de identificar leis gerais de ritmo temporal a partir da maneira como culturas – principalmente antigas, como estas da Mesopotâmia, objetos da presente abordagem – enxergam a si mesmas constitui-se num campo precioso para a metodologia da história. Neste âmbito, gostaria de perguntar: para você, as culturas mesopotâmicas, em geral, interpretavam os ritmos temporais como dinâmicas cíclicas – nas quais os acontecimentos não são nada além do que fatos estritamente redundantes e, portanto, previsíveis –, lineares – segundo as quais cada acontecimento é inédito em toda sua fisiologia factual, sendo, portanto, imprevisíveis – ou, em último caso, espiraladas – apontando para a simultaneidade das duas referências anteriores, sem que uma anule a outra, resultando na previsibilidade abstrata das dinâmicas implícitas aos processos históricos, concretamente expressas na materialidade superficial dos fatos? O que as matrizes culturais mesopotâmicas teriam a nos dizer sobre isso...????
Desde já agradeço pela atenção.
Atenciosamente,
Matheus Landau de Carvalho.
Olá, Simone! Espero que esteja bem!
ResponderExcluirMuito interessante a sua proposta. Acredito que é fundamental criar uma abordagem historiográfica para com o mundo antigo, reconhecendo outras formas de relação com as temporalidades que as não tomadas hoje pelas epistemes ocidentais. Nesse sentido, fico com uma dúvida na seguinte questão, e gostaria de saber se poderia explorá-la um pouco: como essas diferentes apreensões foram concebidas pelas correntes de pensamento histórico-arqueológico do século XIX à atualidade no Ocidente/Norte global? É possível encontrar seu uso potencial em teorias pós-coloniais e decoloniais (agora já extrapolando os limiares ocidentais/do Norte global), tendo em vista o trabalho profícuo com essa diversidade de cosmovisões temporais que proporciona?
Agradeço desde já por sua atenção, e reitero meus elogios à sua comunicação! ;)
Bom dia professora Simone, parabenizo a senhora pelo texto.
ResponderExcluirComo docente do Ensino Básico, fiquei refletindo como levar esse debate para a sala de aula, sobretudo na questão de debater noções como tempo e como história. Como a senhora pensa essa questão aparecendo em sala de aula, especialmente quando a temática de História Antiga está no sexto ano do Ensino Fundamental ?
Gratidão
Olá Simone.
ResponderExcluirParabéns pelo seu trabalho, o qual mostra uma profunta reflexão sobre os eixos básicos da História enquanto ciência social. O que me questiono e tenho dúvida é como e com quais materiais essa discussão pode ser levado até o ensino básico, visto o achatamento dos contéudos referentes as primeiras civilizações, hoje no novo curriculo o foco total está sobre a Grécia Antiga e Roma Antiga, como se fossem mais importantes as demais, como podemos trabalhar isso?
Anderson da Silva Schmitt