O MÉTODO CONTRAPONTUAL SAIDIANO E O ESTUDO DA MEMÓRIA NA QUESTÃO DA PALESTINA por Nina Galvão

 

Neste breve artigo, apresento um dos referenciais teóricos centrais para a pesquisa de doutorado que desenvolvo em torno da construção de uma temporalidade palestina que tem na Nakba- a Catástrofe- o marco fundamental do seu campo de experiências e no Retorno- dos refugiados e deslocados internos expulsos de suas casas na fundação de Israel- um horizonte de expectativas comum.

 

Edward Said tornou-se um referencial indispensável para pesquisadores do campo dos estudos do mundo oriental a partir da conceituação que elaborou do orientalismo [Said, 2007] e das suas reflexões sobre as representações do “Oriente” construídas por escritores, autoridades, viajantes e pensadores ocidentais. No entanto, gostaria de destacar aqui o método contrapontual que o autor delineia em Cultura e Imperialismo [2011] como um imperativo metodológico para o estudo da questão da Palestina em particular- um tema ao qual o autor, palestino, dedicou-se extensamente. Seus fundamentos derivam da firme recusa a qualquer tipo de distinção e, principalmente, hierarquizacão teórica entre aspectos “materiais” ou “objetivos” e as dimensões  ditas “simbólicas” ou “subjetivas” da realidade. Tal discriminação, defende Said, não apenas não existe como tampouco é operacional ou útil do ponto de vista da reflexão crítica.

 

Essa recusa perpassa todo o livro publicado pela primeira vez em 1993. O autor reitera constantemente que “a tendência de disciplinas e especializações em se subdividir e proliferar é contrária à compreensão do todo, quando se trata do caráter, da interpretação e direção ou tendência da experiência cultural” [Said, 2011, p. 48]. Said faz referência e critica de modo contundente as análises puramente formais da cultura, que acreditam em uma autonomia ou neutralidade intrínsecas às representações estéticas, e no seu exame apartado do seu entorno político, social e econômico.

 

No decorrer de minha pesquisa de mestrado, em que debrucei-me sobre a memória palestina do processo de fundação de Israel- chamada por eles de al-Nakba, a Catástrofe-, o alerta contra o que Said qualifica como um “radical falseamento” [2011, p. 110] é particularmente relevante, dado que o campo dos estudos da memória é com frequência dedicado a “etéreas investigações e especulações teóricas” nas quais “as representações são consideradas apenas como imagens apolíticas a ser analisadas e interpretadas como outras tantas gramáticas intercambiáveis” [Said, 2011, p. 110].

 

Quero dizer com isso que não raro o estudo desse tema em particular, devido à singular polissemia e imprecisão teórica que o cerca, termina por operar uma cooptação normalizadora da memória, tomada e analisada quase como o lado terno da história, uma questão de “pontos de vista” ou de “sentimentos” privados. Nessa perspectiva, a memória é não só “exonerada de qualquer envolvimento com o poder”, conforme afirma Said [2011, p. 110] em relação à cultura, como é despida de suas camadas políticas. Tal cisão absolutamente artificial e inócua em suas pretensões a uma suposta neutralidade acadêmica não é nada mais do que um “ato de cumplicidade” [Said, 2011, p. 110] que produz, ademais, modalidades requintadas de negacionismo.

 

É neste sentido que o negacionismo da Nakba palestina adquire hoje contornos mais sutis do que o franco desprezo pelos fatos. Hoje, vemos como circula com impressionante facilidade, por exemplo, o curioso fenômeno de se “reconhecer” a Nakba ao mesmo tempo em que se rejeita a limpeza étnica da Palestina. Como ressaltaram Norman Filkenstein [1992] e Nur Masalha [1991] em uma série de artigos publicados no Journal of Palestine Studies, autores como o historiador israelense Benny Morris são pródigos neste tipo de manobra retórica, a qual contribui decisivamente para a deturpação do campo semântico e a sacralização de uma gramática que rege o debate da questão da Palestina, e que é bem sucedida em seus esforços para banir do debate termos e conceitos desagradáveis como “limpeza étnica”, “apartheid”, “etnocracia”, “racismo” e muitos outros.

 

A memória participa desse esforço ao ser tomada como uma mera questão de ponto de vista: uns lembram desse modo, outros não. Nessa perspectiva, reconhecer não significa mais do que admitir que determinadas pessoas ou grupos partilham de “sentimentos” ou visões subjetivas dos acontecimentos, diante das quais pouco importa a veracidade dos fatos. Assim, o sentido negativo da criação de Israel para os palestinos pode ser plenamente admitido por setores ditos “progressistas” do sionismo, por exemplo, sem que estes jamais admitam que o caráter judeu do Estado possa ter qualquer coisa a ver com este “mau sentimento”. O posicionamento que admite os fatos enquanto nega o evento, para utilizar os termos da análise perspicaz do autor armênio Marc Nichanian [2009], reduz além disso as possíveis “resoluções” para conflitos políticos de primeira grandeza à circulação dos diferentes pontos de vista, quase como se o que faltasse a palestinos e isralenses para pôr suas “diferenças” de lado fosse nada mais do que uma bem intencionada ciranda mnemônica.

 

Ter por vezes que driblar discursos que se aferram a compreensões quase místicas ou metafísicas da memória é um dos ônus inerentes a um campo inundado de imprecisões, diante do qual corre-se o risco de mergulhar em um vazio semântico, seja este um mar de clichês ou um vale-tudo conceitual no qual certas palavras- tais como “representação”, “narrativa” e o próprio “reconhecimento”- adquirem vida própria e são brandidas à torto e a direito sem que digam de fato coisa alguma. A importância de se definir, precisar e delimitar tanto quanto possível o aparato conceitual mobilizado ao longo do trabalho não deve entretanto recair em uma setorização artificial da existência humana, e muito menos deixar implícita uma hierarquização entre as esferas política, cultural e econômica da existência.

 

O regime de temporalidade, a forma de viver o e no tempo de uma comunidade, pode ser tomada como uma das dimensões simbólicas da experiência colonial, e isso nada tem de transcendental ou intangível, mas diz respeito à vivência quotidiana da colonialidade, sua imposição diária sobre os corpos a ela sujeitos. Como ressalta Bruno Huberman [2020, p. 22] em sua pesquisa a respeito do casamento entre a razão neoliberal e o colonialismo em Jerusalém, “as práticas dos atores no território são informadas tanto pelas condições materiais encontradas na realidade como por construções subjetivas que interferem nos atos cotidianos de colonização e resistência “que movem lentamente as estruturas históricas das contradições e conflitos entre israelenses e palestinos”. A violência “simbólica”, como tantas vezes é chamada, não é menos violenta nem se distingue, na realidade, de uma outra violência “material” supostamente mais nociva, assim como são indissociáveis as práticas socioculturais de resistência a essa violência, como o trabalho de memória e os exercícios de imaginação política. O intelectual palestino Adi Opher, ao discutir o que chama de processos de “catastrofização”, também faz um alerta no mesmo sentido:

 

“A natureza dual da ‘catastrofização governamental’ implica uma distinção um tanto semelhante entre os processos reais e sua articulação discursiva. No entanto, o discursivo não é subjetivo nem necessariamente uma representação distorcida do real; é antes a condição para a possibilidade de sua aparência observável e configuração conceitual. Ao mesmo tempo, a catastrofização discursiva pode se tornar parte dos processos reais que determinam a maneira como uma catástrofe se desdobra e toma forma ou é antecipada, mitigada e às vezes até evitada” [Ophir, 2010, p. 43, grifo meu].

 

As palavras e os discursos articulados através delas não são realidades abstratas, mas potências concretas; fazem parte dos conflitos sociais, dos danos políticos impingidos pelas maneiras de escrever, descrever, colocar em cena ou rechaçar a palavra do outro. O próprio pensamento não é de modo algum tão imaterial quanto em geral o consideram; exprime-se através das palavras, dos discursos, das famigeradas narrativas. Todas essas construções ou condensações da experiência formam blocos sensíveis e carregam proposições de mundo característicos que afetam as pessoas de modos muito concretos. Acima de tudo, estão em constante movimento e negociação umas com as outras, e por isso faz-se necessária uma leitura em contraponto dessas dinâmicas.

 

É precisamente contra qualquer noção de pureza cultural que Said propõe como antídoto ao ímpeto classificador excessivamente taxativo um método que não é linear, e sim nômade. O tratamento contrapontual se abre ao movimento e à indeterminação das coisas, pois “... todas as culturas estão mutuamente imbricadas; nenhuma é pura e única, todas são híbridas, heterogêneas, extremamente diferenciadas, sem qualquer monolitismo” [Said, 2011, p. 30]. Realidades complexas e relacionais, que formam conjuntos de “histórias entrelaçadas e sobrepostas” [Said, 2011, p. 56], poderão ser então examinadas enquanto uma “rede de histórias interdependentes” [Idem, p. 57].

 

Said não ignora que essa proposta teórica pode ser sedutoramente genérica e de difícil aplicação, uma vez que “ninguém é capaz de ter tal mapa inteiro na cabeça” [Said, 2011, p. 58], e por isso confere foco às suas análises ao considerar “apenas algumas configurações mais destacadas”. Este movimento não retorna à compartimentalização artificial e ao particularismo exacerbado que o método contrapontual busca justamente inverter; aproxima-se muito mais, na verdade, do exercício genealógico de Foucault- de cujo pensamento Said é abertamente tributário-, para o qual um único traço basta como indício a partir do qual articular e sustentar um argumento a respeito de um conjunto. E, no entanto, vai além ao levar em consideração não apenas o que veio antes ou o que ocorre simultaneamente, mas também o que virá depois, em uma análise temporalmente tridimensional.

           

Ressalto uma vez mais que não se trata de “ver todos os lados” de um contexto conflituoso, e sim de um exame intelectual que abarca a realidade em toda a complexidade das suas relações constitutivas. Said não advoga nenhuma panaceia de tolerância e muito menos ignora diferenciais de poder e as relações de brutal dominação que costumam se encontrar na raiz da falta de “diálogo” entre povos e culturas. O que almeja é poder “pensar experiências divergentes e interpretá-las em conjunto, cada qual com a sua pauta e ritmo de desenvolvimento, suas formações, sua coerência interna e seu sistema de relações externas, todas elas coexistindo e interagindo entre si” [Said, 2011, p. 75]. O embate travado é contra o exclusivismo teórico, e por isso a centralidade do encontro para o pensamento saidiano, notadamente o encontro cultural. É provável que a batalha epistemológica contra qualquer noção de homogeneidade cultural seja aquela na qual o autor mais se engajou, defendendo reiteradamente que “longe de serem algo unitário, monolítico ou autônomo, as culturas, na verdade, mais adotam elementos ‘estrangeiros’, alteridades e diferenças do que os excluem conscientemente” [Said, 2011, p. 51]. É a partir dessa premissa de mobilidade e fortalecimento mútuo que Said propõe em Cultura e Imperialismo uma relação dialética entre o romance enquanto forma cultural e a visão de mundo imperialista, irremediavelmente conectadas.

 

Daí também depreende-se a ingenuidade de certas propostas de “descolonização” da cultura que alimentam a pretensão de apagar ou “limpar” os traços culturais impressos pelas metrópoles em seus antigos domínios- elementos de tal forma entranhados que são difíceis até mesmo de distinguir, que dirá singularizar e eliminar por decreto ideológico. A fantasia de uma tal descolonização epistêmica é inclusive incompatível com a perspectiva saidiana de uma leitura em contraponto, pois inverter os polos de uma hierarquia faz apenas perpetuá-la. Não é concebível- nem desejável- depurar completamente o mundo colonizado da influência cultural metropolitana, e Said destaca como as mais ricas formulações de resistência anticolonial- como as que brotam das mentes de Franz Fanon e Achile Mbembe, entre tantos outros- partem do enfrentamento e da ressignificação dessa herança, e não da sua completa abnegação. A antropofagia é sempre mais interessante que a purificação impossível, e nenhuma modalidade de maniqueísmo teórico é, ademais, conciliável à busca do método saidiano por libertar o mundo dos pacotes intelectuais nos quais foi compartimentalizado.

 

Ao examinarmos a questão da Palestina a partir de um prisma contrapontual- mais do que em uma perspectiva decolonial, portanto, ao menos no sentido do termo apresentado acima-, as interações que se desenrolam ali podem ser apreendias como uma interação organizada, passível de compreensão e elucidação, e não como um conflito antiquíssimo, caótico e inexplicável. Nessa perspectiva, toda política em Israel torna-se indissociável das políticas do Estado em relação ao território e seus habitante nativos; a análise contrapontual torna inadmissível, por exemplo, levar em consideração apenas a Israel tecnológica, “reflorestadora”, “socialista” ou o que quer que seja, descolando o país das suas políticas coloniais em relação aos palestinos.

 

No que tange ao problema central da minha pesquisa de doutorado, o método contrapontual saidiano é o que permitirá o exame conjunto das diferentes temporalidades palestinas, sincrônicas e diacrônicas, e também seu cruzamento com as representações sionistas nas quais inevitavelmente se chocam. Os encontros que mais me interessam não são, no entanto, os que ocorrem há décadas entre o sionismo e os palestinos, ou entre judeus israelenses e os palestinos, mas aqueles entre palestinos vivendo em diferentes circunstâncias. Não tenho qualquer pretensão de abarcar a totalidade dessas experiências, muito menos esgotar o inventário das temporalidades palestinas, e sim propor uma análise a partir de alguns traços de duas dessas configurações, qual seja, os palestinos de 1948, cidadãos de Israel, e os jovens refugiados dos campos de Aida e Dheisheh, na Cisjordânia Ocupada.

 

Tal escolha deixará naturalmente uma série de silêncios e espaços, se não vazios, pouco iluminados, pois as dinâmicas contrapontuais que se estabelecem entre diferentes grupos palestinos são inúmeras, e me debruço apenas sobre dois deles. Existem muitos mundos palestinos, e me interessa pensar como a vida corre neles em paralelo, simultaneamente, ou diacronicamente; como a dimensão temporal dessas existências se articula contrapontualmente umas em relação às outras.

 

Há uma dimensão comum dessa existência que é marcada por uma suspensão temporal característica, pois o Retorno é proibido ao mesmo tempo em que a sua permanência palestina onde quer que seja não é pacata. No entanto, essa característica compartilhada assume feições particulares entre os diferentes grupos palestinos, que vivem em circunstâncias muito diferentes entre si e são confrontados como desafios particulares. Assim, os Palestinos de 1948- como se denominam em larga medida os cidadãos árabes de Israel- têm, por exemplo, quotidianamente de elaborar o que significa permanecer como cidadãos de segunda classe em um Estado que não é o seu, enquanto os habitantes de Aida e Dheisheh se colocam a mesma pergunta em relação aos campos de refugiados, estes espaços-síntese da provisoriedade que se tornou permanente.

 

Da mesma forma, o tempo da espera de que fala Geraldo de Campos em sua tese de doutorado a respeito dos cineastas palestinos Elia Suleiman e Kamal Aj-Jafari [2019] é um tempo que se expande como os círculos concêntricos em torno da pedra atirada num lago, articulando uma coleção de modalidades de espera maiores e menores. É simultaneamente uma espera palestina ampliada e a espera particular de cada palestino que, em sua vivência quotidiana, aguarda coisas específicas. É ao mesmo tempo parecido e fundamentalmente diferente viver uma vida sob o jugo do colonizador, em territórios militarmente ocupados, e viver como cidadão- com todas as reticências implicadas nessa condição no caso dos Palestinos de 1948- do Estado colonial. Vale dizer, todos os palestinos estão esperando alguma coisa. O que, há quanto tempo, e o tanto da sua vida que está rendido à espera, que adquire sentido na própria espera e que depende disso, no entanto, pode variar muito, e é sobre estes contrapontos que me debruço na minha pesquisa. Pensando nessa “grande espera” como horizonte e comum e nas “micro-grandes esperas” como elemento de diferenciação, os Palestinos de 1948 e os jovens dos campos de refugiados têm traços que os aproximam e que os afastam: uns são cidadãos, outros vivem em Território Ocupado, mas ambos carregam consigo o deslocamento e a sua impermanência característica; existe um elemento de fratura constitutiva que baliza a existência de ambos- e que talvez não balize a de um jovem nascido e criado na cidade de Ramallah, por exemplo. Este é, enfim, o fundamento de uma leitura contrapontual: a busca pelas interconexões e determinações entrelaçadas que recusa as análises essencializantes de que falei acima.

 

Referências

Nina Galvão é historiadora e mestra e Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades pela Universidade de São Paulo. Doutoranda do Programa de Pós Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHIS-UFRJ), desenvolve pesquisa sobre memória política, identidade nacional e o direito de retorno dos refugiados palestinos.

 

CAMPOS, Geraldo Adriano de. Por uma filosofia da espera e da permanência: o tempo no cinema de Elia Suleiman e Kamal Aljafari. Tese (Doutorao em Filosofia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019.

 

FINKELSTEIN, Norman. Rejoinder to Benny Morris. Journal of Palestine Studies, University of California Press. Winter, 1992, Vol. 21 No 2, pp. 61-71.

 

HUBERMAN, Bruno. A colonização neoliberal de Jerusalém após Oslo: desenvolvimento, pacificação e resistência em Palestina/Israel. Tese (Doutorado em Relações Internacionais). Programa Santiago Dantas, PUC/UNESP/UNICAMP, São Paulo, 2020

 

MASALHA, Nur. “A Critique of Benny Morris”. Journal of Palestine Studies, University of California Press. Autumn, 1991, Vol. 21, No 1, pp 90-97.

 

NICHANIAN, Marc. The historiographic perversion. New York: Columbia University Press, 2009.

 

OPHIR, Adi. The politics of catastrophization: emergency and exception. In FASSIN, Didier e PANDOLFI, Mariella. Contemporary states of emergency. The politics of military and humanitarian interventions. Nova Iorque: Zone Books, 2010, pp 40-61.

 

SAID, Edward. Cultura e Imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

 

____________. Orientalismo-O Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

3 comentários:

  1. Prezada Nina Fernandes Cunha Galvão,

    desde já gostaria de deixar aqui meus cumprimentos pela comunicação.

    Além de ter ficado muito bem impressionado com a redação, a mesma suscitou-me uma questão bastante relevante para a dinâmica implícita entre historiografia e memória: ao partir da perspectiva saidiana, você salienta, em determinado ponto do texto, “que não se trata de ‘ver todos os lados’ de um contexto conflituoso, e sim de um exame intelectual que abarca a realidade em toda a complexidade das suas relações constitutivas”. Aqui me veio à mente a questão do que eu prefiro denominar “historiografia dos vencidos” pois, a partir de alguns exemplos que, ao meu ver, se encaixam perfeitamente na condição de textos historiográficos produzidos por seus respectivos lados perdedores de conflitos armados na história da humanidade – e.g. “História da Guerra do Peloponeso”, “A estranha derrota”, “Storici arabi delle crociate”, e, em algum sentido, “A retirada dos dez mil”, “As Helênicas” e “A guerra civil na França” –, cabe a seguinte pergunta: até que ponto, à luz da perspectiva metodológica da presente comunicação, é possível trabalhar com esta noção de “historiografia dos vencidos” num contexto belicoso que se arrasta há décadas e que já fez vencedores e vencidos de todos os lados políticos implicados, como é o caso da questão levantada sobre a Palestina?

    Outra questão que, parece-me, é de imediata sugestão, refere-se à expressão utilizada mais ao final da comunicação, “tempo da espera”: quais aplicações metodológicas você vê como plausíveis – e/ou metodologicamente exequíveis numa pesquisa historiográfica – a partir das noções koselleckianas de “espaço de experiência” e “horizonte de expectativa” sobre o tema abordado?

    Desde já agradeço pela atenção.

    Atenciosamente,

    Matheus Landau de Carvalho.

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    1. Caro Matheus,

      Primeiramente muito obrigada pela pergunta e pelos comentários mais do que pertinentes.

      Com certeza penso na "historiografia dos vencidos" como uma importante chave para a compreensão da questão da Palestina. Não sou da opinião de que há "vencedores e vencidos" dos "dois lados" do conflito israelo-palestino, por entender que a brutal assimetria de poder ali envolvida torna esse tipo de expressão normalizadora da violência colonial que se pratica no território. É para mim indiscutível que as vítimas primordiais da violência são, neste contexto, os palestinos. Justamente por isso, a elaboração de uma "história dos vencidos" torna-se tão essencial, pois as instâncias de poder hegemônicas sempre tenderão à enfatizar a perspectiva sionista.

      Quanto à expressão "tempo da espera", com certeza o aparato conceitual proposto por Koselleck é um dos cernes do arcabouço teórico que mobilizo na pesquisa, ao tomar a Nakba (a memória da Catástrofe) como espaço de experiência e o Retorno como horizonte de expectativa fundamental para os palestinos.

      Att,

      Nina Galvão.

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    2. Prezada Nina Fernandes Cunha Galvão,

      desde já agradeço pela atenção na resposta. De fato, as categorias de Koselleck são de imediata sugestão a partir dos referenciais da Nakba e do Retorno... ;)

      Compreendo totalmente a realidade de brutal assimetria no contexto palestino, patrocinada justamente por esta violência colonial conjugada com a perspectiva sionista... talvez não me fiz compreender corretamente, pois quando aponto para o viés da “historiografia dos vencidos”, é no sentido de destacar duas dinâmicas que, pelo menos para mim, são essenciais numa análise historiográfica, digamos, mais detalhista exatamente na violência envolvida, ou seja, (i) até que ponto seria possível perceber a reprodução da violência calculada, outrora perpetrada por israelenses, pelos palestinos, seja de lideranças políticas, seja de camadas populares, ainda que numa escala bem menor (certamente!), porém não-inexistente, (ii) e até que ponto os palestinos não estariam, exatamente aí, experienciando historicamente um processo de oprimidos que, porventura, se tornem opressores – gestando um horizonte de expectativa no futuro, precisamente no espaço de experiência que vivenciam hoje – exatamente não apenas pela reprodução, em menor escala, de violências calculadas, reeditando um processo que os próprios judeus vivenciaram desde a Shoah – quando foram terrivelmente oprimidos – até a Guerra dos Seis Dias – quando se tornaram terrivelmente opressores... foram estas reflexões que me vieram à mente, prezada Nina...

      Mas, enfim, são reflexões que, acredito, extrapolam este momento específico aqui do evento...

      Novamente, agradeço muito pelo texto, pela resposta e pelas reflexões suscitadas... espero nos encontrarmos em futuros meandros acadêmicos... até a próxima ;)

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