NOTAS HISTÓRICAS SOBRE O GOVERNO E A SOCIEDADE CHINESA DURANTE O PRIMEIRO SÉCULO DA DINASTIA QING por Renata Ary

 

Uma breve introdução sobre os Qing: Séculos XVII - XVIII 

Os Qing foram uma dinastia chinesa estrangeira [Manchu] e cujo império durou por aproximadamente três séculos - de 1662 a 1911. A glória do império permeou entre 1662 e 1800. Foi a última dinastia imperial da China, transitou desde o máximo esplendor até a decadência que desencadeou na desintegração do sistema imperial chinês e deu espaço à República Chinesa. Durante os séculos XVII e XVIII, os imperadores Qing: Kangxi [1661-1722], Yongzheng [1723-1735] e Qianlong [1735-1796] reinaram como verdadeiros soberanos numa china cuja população ultrapassava, à época, 300 milhões de habitantes. Por quase dois séculos, reinaram em um ambiente de paz, prosperidade e esplendor como o maior império da história da china.

 

A fim de garantir um governo mais humanitário, os Qing instituíram na China a sua ideologia oficial que ia desde o confucionismo à instituição da prova de mérito para ingressar na carreira pública. Apesar de instituir o confucionismo, os imperadores Qing eram budistas, falavam sua própria língua [o Manchu] e conservavam seu interesse pela caça. Foi um governo que enaltecia o absolutismo, a exaltação do estado e o poder do soberano e ao mesmo tempo, era animado pelos ideais de progresso. A cultura artística, em especial as porcelanas Qing e a arte arquitetônica, eram esplendorosas e denotavam o êxito da dinastia estrangeira Manchu sobre a China. À época, os Manchus representavam apenas 2% do total da população chinesa. 

 

De acordo com Beja [2019, p. 206] alguns historiadores atribuem o êxito da dinastia Qing à sua habilidade de adaptar-se à cultura chinesa, à adoção do confucionismo para ganhar a confiança da população e a lealdade dos súditos, e a habilidade manchu de conciliar os seus ideais culturais com os ideais chineses através da conciliação e sem o uso da força. Outros historiadores, no entanto, realçam que os Qing usavam a força e a intimidação para garantir privilégios aos Manchus marcados pela discriminação e separação entre estes e as demais etnias, como por exemplo, a vestimenta dos Manchus era diferente dos demais, os homens usavam uma longa trança atrás da cabeça e Manchus não poderiam casar-se com não-Manchus. Ademais, de acordo com estes historiadores, os imperadores Qing usavam a força e a intimidação para confiscar terras, garantir o monopólio do ginseng e foram um governo marcado pela corrupção. Para Gernet [1974, p. 13], os Manchus “instalaram-se na China como uma raça de senhores destinada a reinar sobre uma população de escravos, tal como o tinham feito os Mongóis” e “implantaram um política moralizante, racionalista e neo-confucionista”. A questão é controversa.

 

Durante o século XVII, os Manchus viviam na Manchúria e na península de Liaodong, região norte e noroeste da China. Eram considerados selvagens, bárbaros. Dedicavam-se à caça, à pesca e comercializavam pele e ginseng em troca de sal, telas e instrumentos de ferro. Viviam em tribos subdivididas em clãs. Posteriormente evoluíram do sistema tribal para um sistema quase feudal no qual cultivavam a terra [agricultura] e mantinham escravos.  No século XVI, se especializam em artesanato e aprenderam a fabricar suas próprias armas. A princípio os Ming tentaram manter os Manchus separados da china através da força, e como não lograram êxito, mantiveram uma relação de intercâmbio matrimonial e de presentes, e instituíram um sistema tributário chinês. Em 1646, os Manchus invadiram o Sul da China, tomaram Yangzhou e após a queda de Nanquim, capturaram e executaram Honggnang, o príncipe Ming.  Para Gernet [1974, p. 13] “a conquista foi conduzida por uma selvageria” e houve um massacre geral da população. Em 1647, Dorgon assumiu a regência na China, instituiu uma política discriminatória chinesa, utilizou mão de obra-escrava (prisioneiros de guerra e camponeses foram despojados de seus bens e passaram a ser considerados mercadorias - poderiam ser comprados e vendidos) e garantiu privilégios aos Manchus como classe dominante. Impôs a obrigatoriedade do corte de cabelo manchu [bianzi] a todos os chineses como expressão de lealdade à toda a dinastia. 

 

Após a morte do regente Dorgon, Shunzi [1650], de 13 anos de idade, assumiu o poder como o 1º imperador Qing. Em 1662, Kangxi [4º imperador do clã Aisin Gioro] tornou-se o primeiro grande imperador Qing da china e instituiu um governo centralizado.

 

Kangxi [1662-1722] foi considerado o imperador mais importante da dinastia Qing e o primeiro soberano a se apresentar como confucionista, não obstante o respeito que tinha pelo Cristianismo. Publicou um edito de tolerância religiosa e manteve um governo centralizado. Interessou-se pelos clássicos confucionistas, subsidiou a publicação de dicionários de caracteres chineses e uma enciclopédia com mais de 5000 volumes a fim de patrocinar as letras, as artes, a manufatura, a porcelana e a caligrafia. Determinou que os príncipes estudassem a língua chinesa. Era um bom cavaleiro, manteve a tradição da caça e reservou os postos mais altos do governo para os Manchus. Foi considerado um homem inteligente, hábil, trabalhador e amante do conhecimento, apesar de ser considerado severo e cruel. Perseguiu alguns letrados e eunucos. Em 1713 congelou os impostos sobre a terra e conteve diversas rebeliões internas de generais poderosos. Durante o seu reinado, conquistou o Taiwan, a Mongólia do norte, a Ásia central e garantiu a soberania da China sobre o Tibet. Freou o avanço dos Russos pelo pacífico e em 1689 firmou com a Rússia o primeiro tratado da China com uma potência europeia – o tratado de Nerchinsk. [Beja, 2019, p. 211-212]. E o povo, durante o seu governo, desfrutou de uma prosperidade nunca antes vivida.

 

Kangxi teve 56 filhos, destes sobreviveram 08 homens e 20 mulheres.  Após a sua morte, seu quarto filho - YongZhen [5º imperador], após intrigas para alcançar o poder [alguns historiadores acreditam que ele assassinou o seu pai], assumiu o trono [na China do século XVIII não havia legislação sucessória e o herdeiro ao trono era nomeado pelo próprio imperador, daí as várias intrigas e mortes com o objetivo de alcançar o poder].  

 

Yongzhen permaneceu no poder entre 1723 e 1735. Foi um imperador eficiente apesar de intolerante e rígido. Devido as incertezas sobre a sua legitimidade como sucessor ao trono, governou alicerçado no autoritarismo e cercou-se de pessoas de sua confiança a fim de impor sua política de governo. Teve diversos desentendimentos com os eruditos [letrados], tomou medidas para acabar com a corrupção sobre a arrecadação dos impostos e acabou com o privilégio de algumas classes sociais, inclusive extinguiu a isenção fiscal das classes dominantes. Manteve em segredo, até a data da sua morte, o nome de seu quarto filho – Qianlong, como sucessor ao trono.

 

Qianlong [6º imperador] reinou de 1735 à 1795, quando abdicou do trono ao completar 70 anos com o objetivo de não ultrapassar o reinado de seu avô – Kangxi. Apesar da renúncia, informalmente continuou exercendo o poder até a sua morte em 1799. Durante seu império a China alcançou enorme esplendor e glória. Devido ao aumento populacional e a fim de garantir as necessidades dos centros urbanos, incrementou a agricultura e incentivou o comércio regional e nacional. Em seu governo, a arquitetura, as pinturas, as porcelanas e a literatura floresceram. Determinou o inventário e a catalogação da biblioteca imperial: a fim de evitar críticas ao imperador e conter pensamentos considerados subversivos, uma inquisição de livros e autores foi instalada, inúmeros livros foram destruídos e os autores perseguidos, muitos até executados. Foi símbolo do monarca confucionista, ou seja, era culto, benévolo, filial, bom estrategista e marcial: participou pessoalmente de diversas batalhas e sobre elas, escreveu vários poemas, memoriais e levantou diversos monumentos. [Beja, 2019, p. 213-214] Durante seu governo, derrotou os Mongóis, incorporou o Turkestán [atual Xingjiang] à China [1759], consolidou o domínio sobre o Tibet e enviou expedições ao Nepal. Derrotou as insurreições na Birmânia e no Vietnã e instituiu o sistema tributário Chinês nestas regiões.

 

Nos últimos anos de sua vida, Qianlong manifestou o seu amor por luxos e extravagâncias, abrindo espaço para bajuladores que o rodeavam. A partir de 1775, foi influenciado por Heshen que, segundo Beja (2019, p. 214), aproveitando-se da sua beleza e da simpatia do imperador de 64 anos, enriqueceu-se escandalosamente por meio da corrupção e do abuso de poder. Durante a segunda metade do século XVIII, devido a corrupção exagerada, insurgiram contra o império inúmeras rebeliões que pressionaram o imperador econômica e militarmente, dando início à decadência do império Chinês e a desintegração do sistema imperial. 

 

A sociedade e a vida intelectual Chinesa durante os séculos XVII e XVIII

Entre os séculos XVII e XVIII, a China contava com uma população de 300 milhões de pessoas concentradas, em sua maioria, nas planícies do norte, do vale do Yangzi, da costa sul e na província de Sichuan. A população era rural e viviam em aldeias ou em pequenas cidades, e pouco mais de 10.000 habitantes viviam nas cidades.  As cidades eram rodeadas por muros, guardadas militarmente e eram as sedes dos edifícios públicos e privados, onde eram realizados os exames públicos. Nos grandes centros haviam mercados, lojas e bancos. Já nas aldeias as casas eram rodeadas de campos e nelas controlavam-se as águas e praticavam-se atos religiosos. Havia uma certa unidade entre as aldeias quanto a língua, a religião e as práticas sociais.  Elas não eram autossuficientes e necessitavam do apoio do governo e militar.  Contra os abusos dos funcionários do império, os comerciantes recorriam ao suborno e os camponeses eram a classe mais explorada e pagavam impostos altíssimos ao império. Haviam muitos trabalhadores agrícolas sem terra.

 

As tradições sociais e a ortodoxia moral eram notórias. A vestimenta era determinada de acordo com o padrão social e eram usadas de acordo com a hierarquia dentro de uma mesma família: os mais velhos vestiam trajes de pele enquanto os mais novos, tecidos menos valiosos. Nas relações domésticas, haviam servos e escravos. As mulheres poderiam ser objeto de compra para servirem como concubinas, escravas ou servas e durante a dinastia Qing, sofreram inúmeras formas de opressão e humilhação: o número de infanticídios feminino aumentaram [devido a pobreza e pressão social], o concubinato floresceu, o suicídio das viúvas era considerado ‘prova de castidade e virtude’ [a família das viúvas suicidas eram honradas pelo império] e os pés atados ou pés de lótus foram muito populares durante a dinastia, garantiam status social  [meninas entre quatro e nove anos tinham seus pés amarrados aos sapatos a fim de restringir o crescimento e com o pés pequenos – até no máximo 10 cm – elas garantiriam um bom marido no futuro]. A classe dirigente impunha um ideal de mulher como sendo abnegada, submissa e fiel.

 

Mulheres da realeza usavam trajes imperiais e usavam maquiagem branca sobre o rosto e adornos na cabeça, cujo tamanho identificava a hierarquia entre elas. Apesar da opressão, que era vista com bons olhos pelos eruditos confucionistas da época e reflexo da sociedade conservadora da China Imperial, vários escritores expressavam o seu apoio as mulheres através de personagens femininos retratados nas novelas com inteligência e valor. Em algumas regiões as mulheres puderam estudar e escrever poesias e ensaios.

 

O pensamento chinês, marcado por uma época de consolidação política, social, enorme surto econômico e ausência de inconformismo, tornou-se mais sereno e, ao longo do século XVIII, viu-se triunfar um espírito científico e filosófico alicerçado nas tradições escritas. Foi um período de livre pensamento e de críticas às instituições e aos fundamentos intelectuais do Império. Foram analisados os vícios do absolutismo, o autoridade ilimitada dos eunucos, a decadência dos Estados e os métodos de ensino tradicionais [tradicionalista Chinês]  [Gernet, 1974, p. 41].  Obras como o Palácio da longa vida [Changshengdin] de Hong-Sheg [1645 – 1704], que tem como tema os amores da concubina Yang e do imperador Xuanzong ecoavam na sociedade, bem como o leque com flores de pessegueiros [Taohuashan], de Kong Shangren [1648-1718].  Li Yu [1611-1680?] consagrou-se no teatro e no romance. Sua obra célebre é o romance erótico A almofada de carne [Rouputuan]. [Gernet, 1974, p. 42]. A pintura Qing também mereceu lugar de destaque: a vitalidade e a originalidade eram notáveis. Dos notáveis pintores, destaram-se: Bada Shanren e Shitão.

 

Foi um período de esplendor, de muitas conquistas, notório desenvolvimento econômico, territorial e de pacificação social. Apesar de todo o esplendor, no século XIX e devido as guerras do ópio, dependência econômica da China ao ocidente e o imperialismo na China, o mito da superioridade chinesa desmoronou e os movimentos republicanos acentuaram-se em todo o império. Em 1911, o império Qing entrou em decadência total e liderado por Sun Yat-sen, a República foi instituída na China pondo fim as dinastias imperiais chinesas.

 

Referências

Renata Ary é doutoranda em educação, mestre em direitos difusos e coletivos e pós graduada em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

 

BEJA, Flora Botton (coord). História Mínima de China. El Colegio de México: Centro de estúdios de Ásia y África. 2019.

 

BUENO, André. (org.). Mulheres na China Imperial. União da Vitória. 2008.

 

CEINOS, Pedro. História breve de China. Espanha: Silex. 2003.

 

GERNET, Jacques. O mundo Chinês: uma civilização e uma história. Lisboa: Editora. 1974.  Cosmos.

6 comentários:

  1. Maria Teresa Lopes da Silva5 de outubro de 2022 às 08:04

    Bom dia, Renata Ary. Li com muito interesse a sua comunicação. Também me dedico ao estudo do Sul da China e de Macau, sobretudo no séc. XIX. No seu texto refere que durante o governo do imperador Qianlong a população aumentou, pelo que foi incrementada a agricultura e incentivado o comércio regional e nacional, com o objectivo de abastecer sobretudo as cidades. Gostaria de lhe perguntar se, na sua opinião, essas medidas tiveram o efeito esperado ao nível da produção agrícola ou será que a quebra de produtividade começou ainda no séc. XVIII devido, entre outros motivos, ao aumento populacional e à escassez de terra arável? Obrigada. Maria Teresa Lopes da Silva

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  2. Bom dia, Maria Teresa! Obrigada pela pergunta! De acordo com as minhas pesquisas, no início a medida foi eficaz, porém no final do século XVIII até às vésperas da Revolução Chinesa, o aumento populacional era imensurável, a agricultura tornou-se arcaica e a fome imperava, motivo pelo qual, dentre outros, houve a ruptura do poder e a queda da dinastia Qing. :) RENATA ARY

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  3. Vittoria Sampaio Neto Belizário6 de outubro de 2022 às 02:32

    Como a arte foi afetada com o século de humilhações passados durante a decadência da Dinastia Qing?

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    1. Com o fim da dinastia Qing, a arte, como toda a sociedade, sofreu influência externa. RENATA ARY

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    2. Vittoria Sampaio Neto Belizário

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    3. Vittoria Sampaio Neto Belizário6 de outubro de 2022 às 23:09

      Desculpe, publiquei a resposta com o meu nome sem querer kkk. Enfim, muito obrigada por me responder

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