IMBRICAÇÕES ENTRE HISTÓRIA INDIANA E CULTURA HINDU: O CASO LITERÁRIO DO RĀMĀYAṆA DE VĀLMĪKI por Matheus Landau de Carvalho

A cultura hindu se destaca no cenário mundial por constituir um dos mais antigos e dinâmicos conjuntos de tradições culturais da humanidade ainda existentes. Através, principalmente, de suas expressões religiosas, é possível visualizá-las como manifestações histórico-culturais que começaram, de maneira mais recorrente, a ser classificadas como “hindus” em si por islamitas que habitavam a região da Pérsia como uma designação religiosa que diferenciasse os muçulmanos aquém do rio Indo [em sânscrito sindhu, lit. “mar”, “oceano”] dos não-muçulmanos que habitavam além do mesmo rio. Após o estabelecimento soberano dos muçulmanos sobre grande parte do subcontinente indiano, os britânicos se apropriaram, a partir do século XVIII, destes termos como denominadores comuns para se referir a vários segmentos religiosos distintos entre si então presentes na região, contribuindo para sua divulgação e uso amplamente estabelecidos [Rodrigues, 2006, p. 4]. Por tradições hindus será entendido aqui um conjunto de expressões culturais singulares que tendem a se adequar às diversidades regionais, históricas, individuais e comunitárias oriundas do subcontinente indiano, segundo uma pluralidade de tradições com suas comunidades de praticantes, seus sistemas de atos, seus conjuntos de doutrinas e seus processos de sedimentação de experiências, revelando uma flexibilidade e uma abertura acostumada à coexistência de opostos nas esferas ritualística [yajña], gnóstica [jnāna] e mística [bhakti]. [cf. Carvalho, 2017, p. 234, n. 3].

 

Um dos pontos dinâmicos de polissemia cultural das tradições hindus é uma de suas quatro aspirações fundamentais da condição existencial humana [puruṣārthas], o dharma, que refere-se originalmente ao sustentáculo cosmogônico primevo e seu equivalente no ritual humano, assim como a extensão do ritual à esfera das normas sociais e éticas: “Manter a estrutura e as divisões básicas do mundo natural e social, e manter a identidade própria de alguém num sistema de equilíbrio mútuo – isto é no mínimo parte do escopo semântico de dharma, e é provavelmente parte de seu sentido mais antigo e original.” [Halbfass, 1991, p. 389].

 

A partir da mesma raiz verbal – dhṛ como “apoiar”, “sustentar”, “manter em equilíbrio” – Ludo Rocher [2003, p. 102] aponta para o dharma como aquilo que prevê a maneira correta de se manter a ordem e o equilíbrio do universo de modo geral: desde que cada elemento no cosmos se comporte de acordo com seu dharma, o equilíbrio em seu todo é mantido; desde que cada elemento no cosmos de desvie de algum modo de seu dharma, acarreta determinado adharma e perturba o equilíbrio em seu todo. Esta sintonia entre microcosmo e macrocosmo reflete-se no âmbito do ser humano através da noção de que o dharma governa todo aspecto e toda atividade na vida de um hindu ao englobar uma gama de deveres éticos, familiares e sociais segundo uma conduta apropriada [ācāra] para diversos contextos, e pressupor a realização de rituais védicos [yajñas] por parte do indivíduo, segundo os respectivos fins soteriológicos previstos pela cultura hindu.

 

As demandas do dharma hindu estão refletidas em textos sagrados das tradições védicas agrupados e organizados de acordo com uma classificação tradicional de origem indiana, em duas grandes categorias, que no idioma sânscrito recebem as denominações de śruti e de smṛti. Śruti – lit. “o que é ouvido” – é um conjunto de textos ligados à transmissão oral, que não data a um período particular, mas atravessa a história das tradições hindus. É um corpus de ensinamentos de transmissão discipular que propicia uma relação direta e imediata com o conhecimento e a experiência contidos nos textos fundamentais das quatro tradições ritualísticas e filosóficas dos Vedas, quais sejam, o Ṛgveda, o Sāmaveda, o Yajurveda e o Atharvaveda.

 

Smṛti – lit. “o que é lembrado” – poderia ser classificado como um conjunto de textos que estabelecem uma relação indireta, preliminar, mediada com o conhecimento védico, um corpus de ensinamentos que serviriam como um encaminhamento introdutório ao śruti, apesar de não o constituírem e serem considerados como secundários em autoridade, configurando uma parte significativa destes textos que refletem diretamente as demandas do dharma hindu. A noção de smti na cultura hindu é consideravelmente ampla, sendo encarada, na maioria dos casos, como a literatura composta por seres humanos e transmitida como tradição através das gerações. [Rodrigues, 2006, p. 37, itálicos da autora]. A compreensão de smti pode se estender, entre outras expressões orais e escritas, a um vasto corpus literário de narrativas védicas, cujos textos são tradicionalmente classificados como Purāṇas – “estórias do passado remoto”, “contos antigos” – ou como Itihāsas – do sânscrito iti ha āsa, “assim realmente foi”, “assim de fato aconteceu” –, de modo que estes termos sânscritos denominam toda esta tradição textual hindu como tradição Itihāsa-Purāṇa, “conhecida como o ‘quinto Veda’, embora ela seja classificada como smti, textos de autoria humana, e não śruti, revelação” [Flood, 1996, p. 104, itálicos do autor].

 

A tradição textual Itihāsa-Purāṇa, composta majoritariamente do século V A.E.C. até o fim do primeiro milênio E.C., é um reflexo bastante plural de tradições confessionais do subcontinente indiano, fruto do desenvolvimento da adoração a divindades particulares, dando ensejo ao culto devocional [pūjā] como expressão singular do amor ou devoção [bhakti] a uma deidade hindu específica, principalmente a Viṇu, Śiva e Devī – sob suas mais variadas formas e denominações –, e que ainda desempenham um papel crucial na vida hindu contemporânea, sendo transmitida de geração em geração [Flood, 1996, pp. 103-104; Rodrigues, 2006, p. 189]. Além disso, as fontes escritas da tradição Itihāsa-Purāṇa compartilham do mesmo padrão estilístico de composição textual, pois são compostas na mesma métrica poética sânscrita dos ślokas. Esta religiosidade bhakti se colocava, de certo modo, como uma dinâmica proposta de maior maleabilidade em relação a uma certa religiosidade ortodoxa essencialmente centrada no ritual védico [yajña] e imbuída de inúmeras restrições de cunho social. Com determinada abertura inclusiva para a participação de mulheres e alguns setores sociais hindus no ritualismo védico, entre outras questões,

 

Bhakti também estava forjando uma relação entre a devoção teísta e a obtenção de mokṣa. Os Purāṇas descrevem e expandem as vidas e linhagens de deuses e seres humanos, tentando conectar as particularidades dos cultos regionais em um esquema abrangente de um cosmos permeado por uma divindade específica, identificada como o Védico, o Absoluto. Assim, várias divindades são encadeadas no esquema dos avatāras de Viṣṇu […], e várias deusas são fundidas na persona da Grande Deusa, a Mahādevī […]. A família de Śiva incorpora divindades como Skanda, Gaṇeśa e certas deusas, como Pārvatī e Satī.” [Rodrigues, 2006, p. 190, itálicos da autora]

 

Em geral, por Itihāsa compreende-se duas textualidades sânscritas com uma enorme extensão redacional, i.e. o Mahābhārata e o Rāmāyaṇa, cada uma calcada em pelo menos duas recensões originais básicas, cujo tema hindu por excelência é o dharma. Um dos objetivos doutrinários e estilísticos dos Itihāsas é justamente uma exposição propedêutica, pedagógica dos preceitos deste mesmo dharma hindu.

 

No contexto semântico do termo sânscrito composto Rāmāyaṇa, Rāma é um dos avatāras de Viṣṇu e o herói protagonista da narrativa, ao passo que ayaṇa pode designar tanto o ato de prosseguir, mover-se, andar, quanto o próprio caminho, o percurso, a estrada em si [cf. Apte, 1970, p. 48c; Monier-Williams, 1899, 84b]. Portanto, por Rāmāyaṇa entende-se as vicissitudes pelas quais passou Rāma durante seu percurso neste mundo enquanto um avatāra de Viṣṇu. Ainda que consigam extravasar qualquer pertencimento restrito a uma tradição particular, há plausibilidade suficiente para se dizer que os Itihāsas possuem, num primeiro momento, uma orientação vaiṇava, isto é, cuja religiosidade está centrada no culto devocional a Viṣṇu [Flood, 1996, p. 104] que, no caso específico dos Itihāsas, encontra nos avatāras Kṣṇa e Rāma suas expressões mais proeminentes.

 

O Rāmāyaṇa de Vālmīki seria uma das versões textuais ampliadas da narrativa básica, nuclear, original da estória de Rāma, a Rāma-kathā – do sânscrito kathā, um conto, uma estória, um relato [Apte, 1970, p. 131a; Monier-Williams, 1899, p. 247; Wilson, 1819, p. 151a] –, ou seja, o enredo que conta o casamento de Rāma com Sītā, o exílio subsequentemente enfrentado pelos dois na mata indiana, o rapto de Sītā pelo líder das criaturas demoníacas [rākasas], Rāvaṇa, e a batalha contra Rāvaṇa, com a consequente vitória de Rāma, que reconquista sua amada de volta e retorna para sua terra natal, a cidade de Ayodhyā, para governar o reino de Kosala, no norte do subcontinente indiano. Quando esta Rāma-kathā é desenvolvida e ampliada a ponto de se constituir numa versão da estória de Rāma, a respectiva versão, em geral, recebe o nome do autor ao qual se atribui a sua autoria – como no caso de Vālmīki, daí o épico sânscrito, cuja autoria a cultura hindu lhe atribui, ser identificado como o “Rāmāyaṇa de Vālmīki” –, de modo que todas as versões desenvolvidas em diferentes idiomas, estilos, e meios de expressão estética a partir da Rāma-kathā constituem o que recorrentemente é denominada a “tradição textual do Rāmāyaṇa”. Com efeito, Rāmāyaṇa não é apenas uma estória, mas uma verdadeira tradição plural de contar e recontar, de maneiras diversas, as vicissitudes pelas quais passou Rāma em sua trajetória neste mundo.

 

O Rāmāyaṇa de Vālmīki, especificamente, é o desdobramento da narrativa da Rāma-kathā mais influente na língua sânscrita. Tanto textos em sânscrito quanto textos devocionais em línguas regionais compartilham, senão de todas, pelo menos da maioria das características que possuem em comum, pois são geralmente atribuídos a poetas particulares, compostos em gêneros literários estilisticamente elaborados, inicialmente recitados em contextos reduzidos, tais como ambientes palacianos ou religiosos.

 

A polissemia adquirida pelo dharma hindu na textualidade do Rāmāyaṇa de Vālmīki é o reflexo de um período superior a um milênio de sua composição [do século VI A.E.C. ao século XII E.C.], durante o qual os desdobramentos semânticos do respectivo dharma foram desenvolvidos, muito em função dos objetivos doutrinários dos seus vários redatores, visto que “as nuances particulares em seu significado se alternam com a mudança de atitude dos transmissores do texto ao longo dos séculos” [Brockington, 2010, p. 246]. Duas experiências político-culturais que mais se aproximaram de uma abrangência pan-indiana foram decisivas neste processo, i.e. a dinastia Maurya (320 A.E.C.-185 A.E.C.) e a dinastia Gupta (320 E.C.-497 E.C.).

 

O estudo da dinastia Maurya é necessário pela possibilidade que nos oferece de entender como um conceito central para os budistas – dharma, na forma de dhamma – foi apropriado por um governante, Aśoka Maurya, enquanto uma ideologia cultural que superasse os contextos locais de seu império, assim como de que modo este contexto teria induzido à elaboração de uma vasta literatura hindu – dentre outros, os Itihāsas – que, pela primeira vez, tivesse se apropriado deste conceito como central em seu escopo. Segundo Romila Thapar, a dinastia Maurya tendia a um ecletismo confessional das seitas heterodoxas, principalmente dos jainistas, dos ājīvikas e dos budistas, e, a partir das necessidades de unificação do império, Aśoka lançou mão de um conjunto de princípios influenciados por ideias e conceitos intelectuais e religiosos correntes em seu tempo – principalmente o dhamma –, um tempo no qual as almas dos leigos para os quais tais ideias religiosas já não eram mais constituídas exclusivamente por nobres instruídos, mas também por cortesãos, oficiais letrados, camponeses e pequenos burgueses; e os príncipes, sacerdotes e monges, por sua vez, interessavam-se na maneira pela qual as necessidades religiosas se encontravam na sociedade [Weber, 1958, p. 236].

 

Para além disso, pesquisadores da história das tradições hindus, em geral, afirmam que o primeiro milênio E.C. testemunhou o impacto de perspectivas religiosas alternativas no subcontinente indiano, dedicadas a um tipo de cultura soteriológica sintonizada não apenas com buscas mais individualizadas de devoção [bhakti] a uma deidade hindu específica – notadamente Viu e Śiva –, mas também com práticas ascéticas mais particularizadas da yoga, ambas mais refratárias à proposta salvífica calcada no ciclo kármico de mortes e renascimentos, inerentes a um ritualismo védico de práxis mais coletiva [Idem, p. 234]. Ao contrário de um período histórico de restauração ou renascimento que muitos historiadores defenderam por muito tempo, a dinastia Gupta representou um momento de mudança marcante na sociedade indiana, determinante para os rumos históricos e culturais tomados pelas tradições hindus a partir de então. Como bem destaca Thapar [2003, pp. 318-319, itálicos da autora] sobre o período de 300 a 700 E.C.,

 

“Três importantes aspectos do vaishnavismo e do shaivismo, que tiveram suas raízes nas mudanças deste período, levaram a um ethos religioso diferente daquele dominado tanto pelo budismo quanto pelo brahmanismo védico. A imagem emergia como o foco do culto, e esta forma de culto, centrada na puja [adoração], substituía o sacrifício védico. [...] A redução da ênfase no sacerdote comparada ao seu papel no sacrifício ritual do brahmanismo védico gradualmente levou ao culto devocional – bhakti –, tornando-se a forma mais difundida da religião purânica. O culto à deidade tornou-se a principal preocupação do indivíduo, visto que através de bhakti o indivíduo poderia aspirar à libertação do renascimento. A religião védica tinha rituais bem definidos e era exclusiva das castas superiores. A religião purânica tinha um apelo bem mais amplo. Sua acessibilidade repousava na realização de atos que exigiam pouco investimento”

 

Com efeito, é possível identificar nitidamente a presença de todos estes padrões de religiosidade hindu no Rāmāyaṇa de Vālmīki, de modo que sua redação se constitua num produto final que busca conjugar todas essas perspectivas confessionais. Para além disso, não apenas os contextos históricos e culturais, como também os temas e motivos que deram origem aos conteúdos dos Itihāsas, circunscrevem-se a narrativas relativas a heróis e divindades hindus recitadas em contextos rituais védicos – como o rājasūya e o aśvamedha – adquiriram mais proeminência através de bardos em cortes aristocráticas indianas, principalmente ao longo do primeiro milênio E.C. Uma testemunha textual deste fenômeno encontra-se num dos principais manuais de ritualística védica, o Śatapatha Brāhmaṇa, mais especificamente quando versa sobre o aśvamedha, no quarto adhyāya [capítulo], 3:15, de seu décimo terceiro kāṇḍa [parte]:

 

Ao contar esta estória recorrente, ele conta a todas as realezas, todas as regiões, todos os Vedas, todos os devas, todos os seres; e, em verdade, para quem quer que o hot, sabendo disso, conte essa estória recorrente, ou quem até mesmo saiba disso, alcance a companhia e a comunhão destas realezas, ganhe o domínio soberano e o domínio sobre todas as pessoas, assegure para si todos os Vedas e, satisfazendo os devas, finalmente se estabeleça em todos os seres. Essa mesma estória dá repetidas voltas em um ano; e, na medida em que revolve uma e outra vez, portanto, é chamada de estória recorrente.” [Eggeling, 1900, pp. 370-371]

 

Na medida em que o registro textual adquiria proeminência na cultura hindu, os brāhmaṇas conferiam uma redação cada vez mais ornamentada às composições originais dos Itihāsas, no intuito de aumentar a plausibilidade de sua hegemonia cultural sobre a ordem social, de maneira que o dharma hindu fosse “explorado em uma ampla variedade de contextos situacionais. Os [Itihāsas] são úteis porque, ao contrário das obras filosóficas, dos textos rituais e dos hinos védicos que os precedem, eles descrevem a vida social e da corte em detalhes vívidos.” [Rodrigues, 2006, pp. 136-137] como, por exemplo, relações entre membros familiares, seus sentimentos e motivações, suas atividades diárias, etc. A importância da audiência neste contexto residia no objetivo de legitimação das casas reais, com base na sanção de sacralidade conferida por certos padrões de religiosidade popular indiana que ganhavam bastante vulto entre os súditos, principalmente a devoção mística [bhakti] e as tradições ascetas renunciantes dos śramaṇas: “A estória inevitavelmente assume certos aspectos arquetípicos à medida que é contada e recontada porque se torna propriedade da comunidade.” [Buck, 1980, p. 43].

 

Esta mesma comunidade participa, irrevogavelmente, de projetos políticos e valores culturais que deem sustentação e plausibilidade a determinada cultura. Neste intuito, os Itihāsas acabam servindo também a cálculos estéticos literários do sânscrito de legitimação no poder de dinastias inteiras na história do subcontinente indiano, apropriando-se de épicos como paradigmas vivenciais de um suposto passado que precisa ser construído e elaborado, em níveis superlativos de qualidade existencial, na própria textualidade da epopeia:

 

“A epopeia como literatura de uma época olhando com nostalgia para outra pode se tornar uma literatura de legitimação. As interpolações são muitas vezes a legitimação do presente, mas são atribuídas aos heróis do passado. Os bardos talvez estivessem fornecendo os modelos de como os patronos deveriam ser. Porém, mais importante, são os reinos olhando para trás em uma era de comando.” [Thapar, 2000, p. 132]

 

Duas formas de consciência histórica advogadas por Romila Thapar são úteis para a compreensão de toda esta dinâmica histórico-cultural circunscrita aos Itihāsas, a saber, a “história incrustada” [embedded history], na qual a consciência histórica de determinada cultura encontra-se em mitos (seu modo mais profundo), genealogias, panegíricos e épicos, incrustada como os veios numa rocha, com informações relativas ao passado da respectiva cultura e aos comentários de cada momento presente, subsequente no tempo, que lhe aborda e dele se apropria; e a “história externalizada” [externalized history], que tende a revelar a história incrustada e ser mais consciente de seu uso calculado do passado por lideranças políticas e elites sociais, tal como em crônicas familiares, regionais ou institucionais, assim como de biografias de autoridades. Para Thapar,

 

“Na articulação da consciência histórica no início da sociedade no norte da Índia, as formas verdadeiramente incrustadas são evidentes na literatura da sociedade baseada na linhagem, caracterizada pela ausência de formação do Estado, e as formas mais livres ou externalizadas emergem com a transição para os sistemas de estado.” [Idem, p. 125].

 

O pertencimento de Rāma à linhagem régia solar [Sūryavaṃśa] dos Ikṣvākus é um indício literário significativo disto. A historiadora indiana afirma que a consciência histórica desenvolveu-se na Índia antiga a partir de determinada história incrustada muito em função dos Itihāsas refletirem os germes de uma tradição histórica mais consciente e menos incrustada, tendo em vista o fato de serem a expressão de um momento posterior se apropriando de um momento anterior, tomando a forma de interpolações intercaladas entre os fragmentos da tradição oral dos poetas [Ibidem, p. 131]:

 

“A sociedade agro-pastoril do mundo dos heróis estruturada em torno das linhagens dá lugar a sociedades mais claramente agrárias e ao surgimento de centros urbanos controlados pelo que visivelmente emerge como um sistema estatal – que no vale do Gagā, neste período, era principalmente monárquico.” [Idem].

 

Referências biográficas

Matheus Landau de Carvalho é bacharel e licenciado em História com habilitação em Patrimônio Histórico pela Universidade Federal de Juiz de Fora em 2009. Especialista [2010], Mestre [2013] e doutorando [2019-] pelo Programa de Pós-graduação em Ciência da Religião [PPCIR], pela mesma Universidade. É membro do NERFI [Núcleo de Estudos de Religiões e Filosofias da Índia] e da ABHR [Associação Brasileira de História e Pesquisa das Religiões].

 

Referências bibliográficas

APTE, Vaman Shrivam. The Student’s Sanskrit-English Dictionary. 2. ed. Delhi: Motilal Barnasidass Publishers, 1970.

 

BROCKINGTON, John. The Concept of Dharma in the Rāmāyaṇa. In: OLIVELLE, Patrick [ed.]. Dharma. Motilal Barnarsidass Publishers, 2010, pp. 233-248.

 

______. The Sanskrit Epics. In: FLOOD, Gavin [ed.]. The Blackwell Companion to Hinduism. Oxford: Blackwell Publishing, 2003, pp. 116-128.

 

BUCK, Harry H. The role of the sacred book in religion - The Ramayana. In: RAGHAVAN, V. [ed.]. The Ramayana Tradition in Asia. New Delhi: Sahitya Academi, 1980, pp. 40-57.

 

CARVALHO, M. L. Dimensões religiosas e seculares do ascetismo renunciante hindu (parivrajyā) nas Leis de Manu (Mānava-Dharmaśāstra). Revista Plura, vol. 8, n. 1, jan-jun 2017, pp. 212-239.

 

EGGELING, Julius [trad.]. The Śatapatha Brāhmaṇa. Oxford: The Clarendon Press, 1900, Part V. [Sacred Books of the East vol. 44]

 

FLOOD, Gavin. An introduction to Hinduism. Cambridge, Cambridge University Press, 1996.

 

HALBFASS, Wilhelm. Tradition and Reflection: explorations in Indian thought. New York: State University of New York Press, 1991.

 

MONIER-WILLIAMS, Monier. A Sanskrit-English Dictionary. 2. ed. Oxford: Oxford University Press, 1899.

 

ROCHER, Ludo. The Dharmaśāstras. In: FLOOD, Gavin (ed.). The Blackwell Companion to Hinduism. Oxford: Blackwell Publishing, 2003, cap. 4, pp. 102-115.

 

RODRIGUES, Hillary. Introducing Hinduism. New York: Routledge, 2006.

 

THAPAR, Romila. Society and Historical Consciousness: The Itihāsa-Purāṇa Tradition. In: Cultural Pasts. New Delhi: Oxford University Press, 2000, pp. 123-154.

 

______. The Penguin History of Early India - from the origins to AD 1300. New Delhi, Penguin Books India, 2003.

 

WEBER, Max. The Religion of India: The Sociology of Hinduism and Buddhism. Illinois: The

Free Press, 1958.

 

WILSON, Horace Hayman. A Dictionary, Sanskrit and English. Calcutta, Hindoostanee Press, 1819. 

35 comentários:

  1. Olá, Matheus! Espero que esteja bem!

    Achei fascinante a análise que fez sobre o Rāmāyaṇa de Vālmīki. Era uma narrativa que tinha pouco contato até então e seu estudo foi muito bom para dar aprofundamento aos conhecimentos sobre a obra.
    Porém, ao longo da leitura, me surgiram duas questões. A primeira delas é no sentido da circulação do texto. Quando fiz uma disciplina na graduação sobre História da Ásia, eu havia optado por trabalhar com o kāmaśāstra, especialmente a partir do Kāmasūtra e do Kokaśāstra. Me recordo que um dos pontos de discussão levantado por alguns autores residia na forma de circulação desses textos - como eram vistos entre as camadas populares, mas especialmente como apareciam direcionados para alguns grupos mais "de elite" ao contarem com sujeitos muitos específicos em suas recomendações. Isso é algo que me recordei no momento em que você escreve sobre a importância dos súditos para o Rāmāyaṇa. Sendo assim, essa lembrança me fez questionar: em que medida o texto circulava efetivamente como texto entre esses grupos? Como ocorria essa divulgação da narração de Vālmīki?
    Já a outra dúvida é mais uma curiosidade em nível conceitual: por que você optou por usar o termo "estória" em vez de "história"? Tem alguma discussão por traz dessa opção terminológica ou alguma outra motivação para isso?

    Agradeço desde já por sua atenção, e o parabenizo novamente pelo texto! :)

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    1. Prezada Heloisa Motelewski,

      espero igualmente que você esteja bem.

      Desde já agradeço por suas palavras inspiradoras. De fato, as tradições hindus compõem um oceano que mira o infinito, não é verdade...???? É texto que não acaba mais... =)

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    2. Acerca da circulação do texto e da divulgação da narração do Rāmāyaṇa de Vālmīki entre as camadas sociais, temos um cenário, Heloisa, que contempla, basicamente, formas de religiosidade, letramento e produção textual.
      Como eu registrei na Comunicação, o Rāmāyaṇa de Vālmīki é uma ampliação da Rāma-kathā, a narrativa básica, nuclear, original da estória de Rāma, que possui duas origens culturais na história das tradições hindus, i.e. a ritualística védica e as religiosidades devocionais populares, que, per se, se constituem em dinâmicas permanentes de criações e desdobramentos de matrizes narrativas confessionais hindus ATÉ HOJE.
      Aqui é importante, ao meu ver, trabalhar com a noção de textualidade, ao invés de “texto”, exatamente pelas dinâmicas linguísticas também orais do cotidiano implicadas nessas criações e nesses desdobramentos de matrizes narrativas confessionais hindus, dos quais a Rāma-kathā é um exemplo singular, justamente pela reciprocidade entre oralidade e escrita na produção das inúmeras versões surgidas a partir dela. Num primeiro momento, a Rāma-kathā teria sido oralmente transmitida de pai para filho e cantada por menestréis e recitadores, possuindo inúmeras leituras encontradas e tendo sido difundida por muitas bocas em regiões distantes do subcontinente indiano...

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    3. As formas de religiosidade hindu em jogo – lembrando do início da Comunicação, onde aponto para as esferas ritualística (yajña) e mística (bhakti), diretamente determinantes do Rāmāyaṇa de Vālmīki – configuravam textualidades orais, geradores de polissemias dhármicas que, em algum momento, chegavam neste ou naquele trecho da redação escrita das 24.000 estrofes totais às quais chegou o épico em questão, que, assim como foi registrado na Comunicação, foi elaborado do século V A.E.C. até o fim do primeiro milênio E.C. segundo uma crítica acadêmica de hermenêutica do texto – ao contrário das expectativas confessionais hindus, que atribuem a autoria completa deste texto específico somente ao eremita Vālmīki. Esta redação escrita, em vários momentos de sua elaboração, servia, por sua vez, como uma referência registrada de ortodoxia hindu que inspirasse seus praticantes na realização do dharma hindu, através de sua singular pedagogia, própria das narrativas épicas.
      Neste contexto todo, a transmissão autorizada dos ensinamentos hindus, fossem do âmbito do sruti ou do âmbito do smrti, continuavam sob monopólio intelectual dos brahmanas, que eram de fato, os agentes culturais que produziam esses textos sânscritos partícipes dessa mesma textualidade oral-escrita, recíproca entre diferentes camadas sociais, na qual os brahmanas absorviam essas manifestações populares de devoção [bhakti] a uma deidade hindu específica em seus horizontes soteriológicos ortodoxos, centrados na ritualística védica (yajña). Se pensarmos em algo como a noção de circularidade trabalhada por Ginzburg em ‘O queijo e os vermes’, não estaríamos tão longe assim, Heloisa, das dinâmicas culturais que levaram o Rāmāyaṇa de Vālmīki a chegar na(s) forma(s) finais em que se encontra nos dias de hoje.
      Aqui, Heloisa, vale a pena visualizarmos, com algumas reticências características dos intelectuais europeus do século XIX, como os suportes documentais mais antigos ainda existentes do Rāmāyaṇa de Vālmīki podem ser encontrados. O exemplar escrito mais antigo até hoje descoberto do Rāmāyaṇa é um manuscrito em uma folha de palmeira do Nepal, datado provavelmente de 1020 E.C. No prefácio de sua edição crítica “Ramayana id est Carmem Epicum de Ramae Rebus Gestis Poetae Antiquissimi Valmicis Opus” (1829), Wilhelm von Schlegel oferece muitas informações interessantes sobre a existência e a circulação de versões escritas do Rāmāyaṇa em sua época (século XIX E.C.): “Entre os hindus esse costume perdura até hoje. Temos códices em folhas de palmeira, sejam os distintos bengaleses [escritos] em tinta, sejam ostelanganos com cálamo, a quem as escrituras do gênero são, principalmente, aptas em folhas de Boras em forma de leque, mais grossas e duradouras do que as outras.”

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    4. Veja que interessante um comentário de Schlegel sobre as condições de preservação destes códices: “em muitos casos, os códices confiáveis são os de papel e de folhas de palmeira, mais do que aqueles de membrana, como chegaram da antiguidade e medievo até nós. Caem-se em uma emboscada, especialmente, por causa das formigas brancas, as quais, dizem, em uma multidão inumerável sob a seca da Índia são capazes de conduzir, em poucas horas, grandes montes [de manuscritos] ao céu dos livros. [É necessário] que se proteja os códices da mordida delas” . . . =)
      Anterior a este exemplar nepalês, Heloisa, há uma comemoração da apresentação de um códice do Rāmāyaṇa registrada em sânscrito num templo cambojano dedicado a Vālmīki, por volta do século VII E.C., mencionando tanto o épico quanto os avatāras de Viṣṇu. Especula-se que seu fundador, o rei Prakāśadharman, devia à cultura khmer seu apego ao Rāmāyaṇa. Além disso, a concordância próxima nos detalhes verbais e narrativos entre o Buddhacarita e o Rāmāyaṇa sugerem fortemente algumas consultas do poeta budista Aśvaghoṣa a uma versão escrita do épico hindu no primeiro século E.C. São conhecidas mais de duas mil cópias manuscritas do poema, na íntegra ou não.
      Perceba, Heloisa, como as textualidades se dinamizaram, ao longo da história, a partir da Rāma-kathā...!!!! Portanto, as noções de circulação e divulgação do Rāmāyaṇa de Vālmīki sempre foram muito fluidas e difusas no subcontinente indiano. É possível classificar as narrativas desenvolvidas a partir da Rāma-kathā em cinco categorias, i.e. (i) narrativas no idioma sânscrito; (ii) textos devocionais em línguas regionais; (iii) contos populares; (iv) narrativas modernas, compostas em prosa ou verso nos últimos cem anos, em idiomas regionais indianos; (v) e formas mais breves de expressão cultural, como canções populares, crenças, provérbios ou expressões estereotípicas, mantras sagrados, analogias e charadas (enigmas).

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    5. E ainda tem mais, muito mais... esse manancial sânscrito, por sua vez, acabou inspirando inúmeras versões asiáticas advindas da Rāma-kathā original, classificadas acima como textos devocionais em línguas regionais. Dentre as versões compostas em sânscrito, destaca-se o Adhyātma Rāmāyaṇa, também organizado em sete kāṇḍas, tradicionalmente atribuído ao sábio hindu Vyāsa e extraído do Brahmāṇḍa Purāṇa. O Laghu Yoga Vasiṣṭha, de Abhinanda da Caxemira, é uma versão abreviada do Yoga Vasiṣṭha. Outras duas versões sânscritas atribuídas a Vālmīki são o Ānanda Rāmāyaṇa, que traz o relato do estabelecimento do Śiva Liṅgam em Rameśvaram por Rāma, e o Adbhuta Rāmāyaṇa, com ênfase maior na figura de Sītā.
      Há duas obras com o título de Vasiṣṭha Rāmāyaṇa: uma, mais conhecida como Yoga Vasiṣṭha, também atribuída a Vālmīki, trazendo consigo alguns princípios do Advaita Vedānta, e outra, conhecida como Vasiṣṭhottara Rāmāyaṇa (também encontrada sob os títulos de Śatamukha, Sahasramukha Rāvaṇa Carita ou Sītā Vijaya), atribuída a Jaimini Bharata – ou ao Vasiṣṭha Saṃhitā do Skandha Purāṇa, segundo alguns manuscritos –, discorre sobre a derrota de Rāvaṇa por Sītā.
      Além destes, Heloisa, há também o Agastya Rāmāyaṇa, tradicionalmente atribuído ao sábio hindu Agastya, o Kāka Bhuśuṇḍi Rāmāyaṇa (também conhecido como Brahma Rāmāyaṇa ou Bṛhat Rāmāyaṇa), escrito por Kāka Bhuśuṇḍa, sob forte influência do Vedānta, o Mahārāmāyaṇa, no qual estórias alegóricas e avançadas doutrinas do Advaita Vedānta – como o dṛṣti-sriṣṭi-vāda – se fazem presentes (Raghavan, 2009, p. 41), o Tattvasaṃgraha Rāmāyaṇa de Rāmabrahmānanda, compilado no sul do subcontinente indiano, assim como o Rāmarājya (ou Maṅgala-maṅgala), apenas com uma cópia incompleta das suas vinte e quatro partes no estado indiano de Mahārāṣṭra.
      Outras fontes sânscritas também possuem, em suas recensões, trechos dedicados a versões narrativas da trajetória de Rāma na terra (seu āyaṇa neste mundo), como o Rāma Upākhyāna Parva do Vana Parva, uma das partes constituintes do Mahābhārata, assim como o nono skandha do Bhagavata Purāṇa, além de breves passagens no Viṣṇu Purāṇa e no Agni Purāṇa. O Satyopakhyāna é atribuído tanto ao Padma Purāṇa quanto ao Brahmāṇḍa Purāṇa, com ênfase na infância de Rāma, de Kaikeyī e de sua serva Mantharā.

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    6. Na quarta seção do Padma Purāṇa, intitulada Pātāla Khāṇḍa, encontra-se uma narrativa de seis capítulos sobre o aśvamedha realizado por Rāma, ao passo que na quinta seção, intitulada Śṛṣṭi Khāṇḍa, há um relato do reinado de Rāma (rāmarājya), com um breve resumo da estória principal do épico. Existem alguns manuscritos relacionados à narrativa de Rāma proveniente do Mairāvaṇa carita (a estória do Ahi-Mahi Rāvaṇa), considerado parte do Jaminīya Aśvamedha Parva (ou Jaimini Bharata), o que, para V. Raghavan, não é verdade, tratando-se de outra fonte narrativa diversa, ao contrário do Setumāhātmya (Raghavan, 2009, p. 37). Na terceira parte do Skānda, denominada Brahma Khāṇḍa, a descrição do local habitado pelos brāhmaṇas modha, i.e. Dharmāraṇya, estabelecido por Rāma, conduz à uma narrativa do rāmarājya. No primeiro khāṇḍa do Viṣṇudharmottara, é possível encontrar as narrativas sobre a estória de Rāvaṇa, de Laṅkā, e dos episódios militares circunscritos a Bharata e Śatrughna.
      Um manuscrito do século sexto E.C., Dasa Griba Rakshash Charitram Vadha, contém cinco kāṇḍas, sem o Bālakāṇḍa e o Uttarakāṇḍa, retratando Rāma mais como um humano do que como um deva. Já o Svapana-Dasanana de Bhimata, baseado num sonho de Rāvaṇa, foi escrito nos séculos VI e VII E.C., enquanto que o Rāmabhyudaya de Yaśovarman, em seis atos, foi redigido no sétimo século E.C. O Uddata-Rāghava de Mayu-rāja (também conhecido como Anagaharsha), por sua vez, foi composto por volta do século VIII E.C.
      Os séculos IX e X E.C., Heloisa, conheceram onze versões do Rāmāyaṇa, i.e. o Ascharya-choodamani de Śaktibhadra, baseado no próprio Rāmāyaṇa; o Maithili-kalyana de Hastimalla, baseado no casamento de Sītā; e o Chalita-Rāma, também com base na vida tardia de Rāma, cujos manuscritos se perderam, o Kṛtya-Rāvaṇa, o Māyā-Puṣpaka, o Rāma-Carita, o Rāmananada de Śrīgadita, Anargha-Rāghava de Murari, o Bāla-Rāmāyaṇa de Raj-śekhara (em dez atos), o Abhinava-Rāghava de Kṣirasvāmin e o Vali-Vadha.
      Nos séculos XI e XII E.C. apareceram as versões Marica-Vancitaka (em cinco atos), Prasana-Rāghava de Jayadeva (em sete atos), a Raghu-vilasa de Rāmacandra, a Rāghavabhyudaya de Rāmacandra – com outros três dramas do mesmo nome escritos por Gaṅgādhara, Bhagavan Raya and Venkateśvara –, a Janaki-Rāghava – que possui outra versão, o Janaki-Rāghava de Yuvraja Rāmasiṃha –, a Maha-Nataka de Damodara, e a Rāma-vikrama, um drama do Rāmāyaṇa que foi perdido, de cuja existência se sabe através do autor Sagaranandin. Uma peça do século XI E.C. intitulada Mahanataka, de Hanumat, narra a estória de Rāma em nove, dez ou quatorze atos, dependendo da recensão.
      Além destes exemplos, Heloisa, destacam-se o Pratima Natak de Bhasa, o Abhiseka Nataka de Bhasa, o Yajña-falam de Bhasa, o Kundamālā de Dinnaga, baseado no Uttara-Rāmāyaṇa, o Mahāviracarita de Bhavabhuti, baseado no Rāmāyaṇa de Vālmīki, o Uttara-Rāma-Carita de Bhavabhuti baseado na vida tardia de Rāma, o Janaka jananada de Kalya Lakṣmi Narsingh, a partir do Rāmāyaṇa de Jaimini, e o Rāmabhyudaya de Rāmadeva Vyāsa, em dois atos, redigido no século XV E.C.
      Cinco versões datam do século XIII E.C. Pelo prólogo do Dutangada de Subhata sabe-se que o mesmo foi representado na corte do rei calukya Tribhuvanapala, que reinou em 1242-1243. Através de referência feita por Singabhupala, o Amogha-rāghava é um drama perdido do Rāmāyaṇa do mesmo século, assim como o Ullagha-rāghava de Somesvara. Já Somesvara (1219-1271) foi um poeta da corte do rei Viradhavala, da dinastia Vaghela, assim como da região do Gujarat, cujo manuscrito encontra-se na Biblioteca de Baroda. Quatro versões datam do século XIV E.C.: o Unmatta-rāghava de Bhāskara, o Unmatta-rāghava de Mahadeva Śastri, o Ānanda-rāghava de Rajacūḍāmaṇi Dīkṣita, e uma segunda redação do Maha-Natak, de Madhusudana. O Abhirama-mani de Sundaramisra é um drama baseado no Rāmāyaṇa escrito em 1599 E.C.

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    7. No século XVIII E.C. surgiram o Adbhuta-darpana de Mahadeva, em dez atos, o Janaki-parinaya de Rāmabhadra Dīkṣita – com outros dois dramas com o mesmo título, um de Nārāyaṇa Bhaṭṭa e o outro de Sītārāma. Já o Rāghavānanda é um drama do Rāmāyaṇa composto por Venkateśvara, pertencente à corte de Serfoji de Tanjore (1684-1728). O Lalita-rāghava de Rāmapani Deva foi escrito no século XIX E.C.
      Além de todos os exemplos supracitados, há também versões do ayaṇa de Rāma em outros idiomas do subcontinente indiano, provenientes de diversas regiões. Originário da atual região de Jammu e Caxemira, o Rāmāvatāra Carita foi escrito em caxemíri no século XIX E.C. Na área equivalente ao atual estado de Uttar Pradesh surgiu uma das mais famosas versões do Rāmāyaṇa, o Śrī Rāmacaritamānasa, escrito no idioma avadhī por Gosvāmī Tulsī Dās no século XVI E.C. No nordeste do subcontinente indiano foram compostos o Saptakāṇḍa Rāmāyaṇa, no idioma assamês, no século XIV E.C. por Madhava Kandali, e o bengalês Kṛttibāsi Rāmāyaṇ, escrito por Kṛttibās Ojha, no século XV E.C.
      As versões do Rāmāyaṇa na língua oriá (oṛiā), da região de Orissa, possuem um longo histórico. O Dandi Rāmāyaṇa (ou Jagamohan Rāmāyaṇa) foi adaptado por Balaram Dās no século XIV E.C. O Vilaṅkā Rāmāyaṇa foi escrito por Sarala Dās como um poema no século seguinte. Em seguida, Raghunath Bhanja de Gumusar escreveu o Raghunath Vilasa, e seu neto, Upendra Bhanja, o Baidehisha Vilasa, no século XVII E.C. A versão em oriá mais popular é a Bisi Rāmāyaṇa (ou Bichitra Rāmāyaṇa), de Bisvanath Khuntia, ainda encenada no Rāmlīlā. O Ramkatha pode ser encontrado em tradições populares e tribais de Orissa.
      Nas partes ocidentais do subcontinente indiano, encontra-se o Tulsī-Kṛta Rāmāyaṇa, uma adaptação em gujarātī do século XVII E.C. pelo poeta Premanand Svami a partir do Śrī Rāmacaritamānasa de Tulsī Dās; o Rāmayanu, escrito por Kṛṣṇadāsa Śama no século XV E.C. em Kardalipura, Goa, no idioma concani (koṃkaṇī), cujos manuscritos foram descobertos em Portugal; e o Bhavartha Rāmāyaṇa escrito na língua marati (marāṭhī) por Sant Eknath no século XVI E.C. Há igualmente uma referência a uma tradução do Rāmāyaṇa para o marati antigo durante o século XII ou XIII E.C.

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    8. O sul indiano, especificamente a área equivalente aos atuais estados de Āndhra Pradesh, Karnāṭaka, Kerala e Tâmil Nadu, Heloisa, é uma grande região onde predominam os idiomas tâmil, canarês (kannaḍa), telugo e malaiala (malayāḷam), pertencentes à família linguística dravidiana – a quarta maior do mundo –, distinta da família indo-ariana, predominante no norte indiano (Richman, 2008, p. 14). Mais precisamente na região equivalente ao atual estado de Āndhra Pradesh – onde se encontra um local importantíssimo de peregrinação de devotos de Rāma em Bhadrachalam –, há três versões na língua telugo, i.e. o Śrī Ranganatha Rāmāyaṇam, adaptado por Gona Budda Reddy entre 1300 e 1310 E.C., o Molla Rāmayanamu, adaptado pelo poeta Molla, e a obra mais extensa em telugo, a de Śrī Viśanadha Satyanārāyaṇa, intitulada Śrīmad Rāmāyaṇa Kalpavṛkṣamu, uma releitura livre do Rāmāyaṇa, posteriormente premiada na língua telugo.
      A atual região indiana de Karnāṭaka mantém algumas manifestações culturais circunscritas ao Rāmāyaṇa, i.e. um culto largamente estabelecido à figura de Hanumān, o Festival Dussera, em Mysore, de veneração ritual às armas de Rāma, além da encenação de repertórios do tradicional teatro Yakṣagāna (Richman, 2008, p. 16). As versões do Ramkathā oriundas de Karnāṭaka são o Kumara-Vālmīki Torave Rāmāyaṇa, do século XVI E.C., e o Rāmacandra Carita Purāṇa, escrito por Nagacandra durante o século XII E.C., além de duas obras em prosa de Nanadalike Lakṣminārāyaṇa, i.e. o Adbhuta Rāmāyaṇa, de 1895 E.C., e o Rāmasvamedham, de 1898 E.C.
      Na região de Kerala existem muitos templos dedicados a Rāma que patrocinam encenações de dança clássica de estórias do Ramkathā, i.e. o kathakalī para os homens e o mohinī attam para as mulheres (Richman, 2008, p. 16). A obra poética mais antiga ainda existente na língua malaiala é o Rāmacharitam, baseado no Yuddhakāṇḍa, escrito no século XII E.C. por Cheeraman. O Kannassa Rāmāyaṇam, da autoria de Niranam Rāma Panicker, do século XVI E.C., e o mais popular, o Adhyātma Rāmāyaṇa Kilipāṭṭu, de Thunchaththu Ramanujan Ezhuttacchan, também do século XVI E.C. (Mappila Rāmāyaṇam entre os muçulmanos), também foram aí compostos.
      Da região meridional de Tâmil Nadu provém a versão popular tâmil do poeta Kamban, intitulada Kamba Rāmāyaṇam, datada do século XII E.C., o último século de expansão do império Chola, que testemunhou na região em torno de Thanjavur (Tanjore) uma veneração memorável a Rāma como o rei perfeito (Richman, 2008, p. 16).
      Outros exemplos de versões continentais são o Rāmāyaṇa na língua urdu (falada majoritariamente na região do atual Paquistão) denominado Pothi Rāmāyaṇa, escrito em 1776 E.C.; a versão persa, encomendada em 1558-1590 pelo emperador mogul Akbar, intitulada Rāmāyaṇa de Akba; as versões nepalesas intituladas Siddhi Ramayan e Bhanubhaktako Ramayan; e a versão cingalesa, o Janakiharan.

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    9. É possível também encontrar versões do Rāmāyaṇa na Ásia central, no sudeste asiático e no Japão, onde foi composto o Ramaenna (ou Ramaensho). Ao passo que no Tibete existe a estória tibetana do Rāmāyaṇa encontrada em vários manuscritos de Dūnhuáng (敦煌), por outro lado, na província de Yunnan, no sul da China, há o Langka Sip Hor, na língua dǎilèyǔ (傣仂语).
      No Laos, encontram-se as obras Phra Lak Phra Lam – considerada o épico nacional laociano – e o Gvay Dvorahbi, escritos que, por sua vez, já sofreram notável influência budista, principalmente da tradição textual dos Jātakas. A versão cambojana intitulada Reamker ajuda a compor um cenário cultural mais amplo no qual os budistas da tradição Theravāda identificaram a figura de Rāma com a figura de Buda como uma só pessoa, trazendo uma multidão de divindades hindus do Rāmāyaṇa para sua tradição (assim como na Tailândia, cf. Bose, 2004, p. 7).
      Na Indonésia – onde a estória de Rāma costuma a ser assimilada pela tradição islâmica (cf. Bose, 2004, p. 7) –, há quatro versões do Rāmāyaṇa, espalhadas em três locais diferentes, i.e. o Ramakavaca da província de Bali, o Kakawin Rāmāyaṇa e o Yogeśvara Rāmāyaṇa da ilha de Java, e o Rāmāyaṇa Svarnadvipa da ilha de Sumatra. Enquanto que na Malásia há duas versões, ou seja, o Hikayat Seri Rama e o Hikayat Maharaja Wana, em Myanmar há o Yama Zatdaw (Yamayana). Na ilha de Mindanao, nas Filipinas, encontramos o Maharadia Lawana, e na Tailândia o Rammakian, o épico nacional do país, além do Phommachak.
      As tradições budistas e jainistas também possuem suas respectivas versões do Rāmāyaṇa. A Daśarata Jātaka apresenta Rāma e Sītā como irmãos que se casam, como uma imagem simbólica comum na literatura budista primitiva para denotar a pureza de uma dinastia, visto que Siddhārtha Gautama seria proveniente do clã dos Ikṣvākus, ao qual pertencia Rāma. A versão jainista mais influente, composta entre o terceiro e o quarto século E.C., é a Paumacāria de Vimalasūri, na qual todos os personagens são representados como jainistas, de modo que Rāma, Sītā e Lakṣmaṇa visitam locais de peregrinação jainistas ao invés de ashrams (como no Rāmāyaṇa de Vālmīki) durante sua passagem pela floresta. Outra versão jainista do Rāmāyaṇa, o Kumudendu Rāmayana, foi escrita em canarês (kannaḍa) no século XIII E.C.

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    10. Enfim, prezada Heloisa, a questão da circulação do texto e da divulgação da narração do Rāmāyaṇa de Vālmīki tornou-se algo que, literalmente, saiu da supervisão, do controle ortodoxo de quem quer que seja... na consciência de suas várias versões asiáticas, William Buck afirma em uma carta, a despeito dos críticos das mudanças e combinações de sua adaptação para a prosa em língua inglesa, que o Rāmāyaṇa “é uma das estórias mais populares do mundo, e faz parte de sua própria tradição ser recontado em diferentes épocas e lugares, tal como eu fiz.”

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    11. O fato de ter optado por usar o termo “estória” ao invés de “história”, prezada Heloisa, deve-se exclusivamente a uma prudência metodológica a fim de se evitar equívocos categóricos elementares. O que quero dizer é que, tradicionalmente, traduz-se uma das palavras utilizadas para classificar o Rāmāyaṇa de Vālmīki, ou seja, ‘Itihāsa’, como “história” ou como a tipologia documental sânscrita hindu mais próxima daquilo que, na Academia europeia ocidental, se entende por historiografia. Do ponto de vista da teoria e da metodologia da História, tal como entendidas sob a acepção de ‘métier d’historien’ comprometido com a verificação analítica e refratária a objetivos confessionais religiosos em sua produção textual – a historiografia em si –, me senti mais confortável em atribuir ao Rāmāyaṇa de Vālmīki a noção de ‘estória’ tendo em vista, principalmente, a proeminência de seu viés narrativo. Veja quais são e o que implicam os termos autóctones sânscritos utilizados para se referir ao épico além de ‘itihāsa’, Heloisa:

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    12. Ākhyāna, i.e. um conto, uma estória, por meio do qual o próprio Rāmāyaṇa de Vālmīki define a si mesmo: “Este grande ākhyāna, conhecido como Rāmāyaṇa, preocupa-se com aqueles grandes reis vitoriosos, os Ikṣvākus, descendentes de Brahmā, senhor das criaturas, e aqueles a quem esta terra pertenceu primeiro. [...] Vou recitá-lo, desde o começo, na sua totalidade, sem omitir nada. Ele permanece com o dharma, o kāma e o artha, e deve ser escutado com devoção” (BāKā V,1.3-4). Ākhyāna é uma narrativa em estilo didático, com certo apelo popular na cultura védica por suas virtudes dramáticas e morais no louvor de heróis e aristocratas (rājās), à qual foi dado um lugar no sistema ritual hindu. Em geral dedicada a uma estória particular, às vezes reunida com outras num ciclo narrativo, até mesmo o Mahābhārata poderia ser visto como um ākhyāna, de modo que possuía como seu tema um fio condutor na forma de um evento ou sequência de eventos constituindo uma estória com início, meio e fim (o Mahābhārata como Bhāratākhyāna). Os ākhyānas dedicavam-se a estórias de membros de famílias governantes, enfatizando suas biografias e feitos, incidentalmente fornecendo informações sobre suas linhagens régias. Sua associação com o universo ritual védico tinha o objetivo de conferir certa santidade a estas estórias.
      Inicialmente recitados em rituais, os Itihāsas se transformaram em fontes de uma determinada composição poética, um tipo de poema muito recorrente em várias cortes régias no fim do primeiro milênio E.C., o kāvya, palavra pela qual o Rāmāyaṇa de Vālmīki, especificamente, também é identificado: “Ao se aproximar da realização de um aśvamedha por Rāma, Vālmīki disse a seus dois discípulos (śiṣyas), filhos de Rāma: “Ide e, com toda a concentração e com o maior dos júbilos, entoem o kāvya, o Rāmāyaṇa, por completo, nos sagrados acampamentos dos ṛṣis, nas habitações dos brāhmaṇas, nas estradas e atalhos reais, e nas moradas dos reis.” (UtKā LXXXIV,3-4)

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    13. Outro termo sânscrito pelo qual o Rāmāyaṇa pode ser conhecido ou tecnicamente classificado é o carita, que designa a vida, a biografia, os atos, os feitos, as aventuras de alguém, bem como sua história. Após Vālmīki, o brāhmaṇa (erudito hindu) a quem as tradições hindus atribuem a autoria da principal versão sânscrita do Rāmāyaṇa, compor os primeiros versos no respectivo idioma, Brahmā lhe diz: “Brāhmaṇa, foi somente por minha vontade que você produziu este discurso elegante. Maior entre os ṛṣis, você deve agora compor toda o carita de Rāma”.
      Como um complemento às vaṃśāvalīs, isto é, histórias de famílias reinantes em regiões geográficas específicas no subcontinente indiano, o carita é um tipo de biografia histórica focada na figura do rei como o centro da autoridade em um sistema estatal mais radial. Enquanto um elogio aberto e despudorado a membros com status e funções especiais nas famílias governantes, a maioria dos caritas mais conhecidos foi escrita entre os séculos VIII e XII E.C. Um desdobramento dos caritas, os vaṃśanucaritas, genealogias das linhagens e dinastias conhecidas até meados do primeiro milênio E.C., foram o epicentro histórico da tradição literária dos Itihāsas, incorporando muitos traços dos ākhyānas e das kathās.

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    14. Se percebermos com atenção, Heloisa, acredito que é mais plausível visualizar o Rāmāyaṇa de Vālmīki como “estória” em vez de “história”, exatamente pelos complicados meandros metodológicos e teleológicos inerentes ao seu conteúdo.

      Enfim, prezada Heloisa, é claro que há muito mais do que o supracitado para responder com propriedade as suas dúvidas. Como registrei no início de minha resposta, as tradições hindus compõem um oceano que mira o infinito... espero ter correspondido minimamente às expectativas... Forte abraço, desejando uma excelente caminhada em suas veredas asiáticas... ;)

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  2. Caro Matheus, parabéns pelo ótimo texto sobre a historiografia indiana! Minha pergunta diz respeito as tensões epistêmicas entre a escrita da história no sentido moderno e a visão tradicional indiana, que propõe uma visão similar, em termos, a escrita homérica. Como conciliar essas duas formas de escrita, se isso é possível? No resgate de tradições históricas locais [como os griot africanos ou dos narrados indianos hindus], percebe-se o conflito entre a ideia de uma história 'científica' e documental x a percepção atemporal e aorística dessas narrativas - diga-se, um sucesso em termos de transmissão e manutenção de princípios religiosos. Como lidar com esse desafio? E ainda: as tentativas arqueológicas de comprovar passagens do Ramayana e do Mahabharata não seriam parte de um movimento para subsidiar a validação dessas tradições? Por fim, gostaria que explicasse melhor o último parágrafo do texto, em conexão com as ideias debatidas. Grato! =)

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    1. Prezado prof. André, que alegria receber seu comentário...!!!! Desde já agradeço pela atenção e pelas palavras. De fato, aos olhos dos historiadores, tuas perguntas ajudam substancialmente a compreender minha Comunicação – tal como as da Heloisa Motelewski, claro! –, apontando para dinâmicas por trás de suas propostas. Vamos ao que interessa.

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    2. A possibilidade de conciliação entre a escrita da história no sentido moderno, desta história ‘científica’ e documental, e a visão tradicional indiana, com suas percepções atemporais e aorísticas, bem-sucedidas em termos de transmissão e manutenção de princípios religiosos, ao meu ver existe no plano das habilidades humanas identificáveis em ambos os processos culturais (o historiográfico e o confessional), como preservação da memória de fatos passados, atenção meticulosa com o pertencimento ao espaço abordado (no respectivo épico), preocupação didática com o registro escrito para seu conhecimento por futuras gerações. E justamente aqui os desafios começam a aparecer, sobretudo na maneira pela qual essas habilidades são colocadas em jogo.

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    3. A questão da conciliação entre as duas referências acima numa textualidade hindu como o Rāmāyaṇa de Vālmīki – e por ‘textualidade’, especificamente aqui no caso hindu, eu entendo as dinâmicas linguísticas também orais do cotidiano indiano, implicadas em criações e desdobramentos de matrizes narrativas confessionais hindus, em constante diálogo semântico com seu respectivo registro escrito, em processos de mútua edição de conteúdo – passa pela teleologia dhármica que orienta todos os elementos de sua narrativa. A construção textual pode até apresentar dados ou informações de uma factualidade verídica substancial, verificável ainda nos dias de hoje, mas sempre ocupam uma coadjuvância em nome dos objetivos doutrinários hindus.

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    4. Esta reciprocidade mútua criativa gera um obstáculo enorme para o historiador que se dedique a compreender, historicamente, as tradições hindus, exatamente pela dificuldade na datação documental da literatura sagrada hindu, que, não raramente, apresenta períodos de composição excessivamente elásticos para uma contextualização minimamente plausível de seus respectivos conteúdos. O próprio Rāmāyaṇa de Vālmīki foi elaborado do século V A.E.C. até o fim do primeiro milênio E.C. segundo uma crítica acadêmica de hermenêutica do seu texto. É um épico cuja produção testemunhou desde os primórdios do budismo no subcontinente indiano até o estabelecimento permanente do domínio islâmico na região, passando por três períodos significativos, como os das dinastias Maurya e Gupta, além da chegada dos macedônios com Alexandre...

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    5. Pensando em termos do ‘métier d’historien’, essa conciliação entre a escrita da história e a visão tradicional indiana encontraria um ponto de equilíbrio eficiente, acredito, em algo como o ‘paradigma indiciário’ defendido por Ginzburg, na medida em que um épico pode, sim, oferecer informações preciosas aos olhos de um historiador, sem o objetivo claro de atender às exigências metodológicas de uma pesquisa historiográfica. Se, por um lado, os indícios sempre trazem consigo a incerteza da insuficiência, por outro, acabam servindo como possibilidade tangível de visualizar pontos de plausibilidade empírica, ainda que esparsos, da história indiana.

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    6. Quanto à arqueologia da Índia, pelo menos pra mim existe a mesma dicotomia perceptível na arqueologia bíblica – sobretudo pela dinâmica entre minimalistas e maximalistas que, no caso das tradições hindus, traz em seu bojo um problemão pelas referências às textualidades védicas no sentido apontado pela presente Comunicação de ‘śruti’ e ‘smṛti’, elevando à enésima potência os equívocos, as distorções, etc –, adquirindo por vezes, na voz de pesquisadores ufanistas pela Índia, tons de nacionalismo indiano que podem obscurecer um olhar mais perspicaz, mais atento advindo das realidades históricas encontradas nas escavações. Aqui, infelizmente, até onde me cabe saber, prof. André, nem a cerâmica, nem a numismática, têm oferecido respostas tão iluminadoras assim sobre o Rāmāyaṇa de Vālmīki. Até a geografia, que indubitavelmente se constitui na área mais promissora em termos de lançar uma luz sobre a história antiga da Índia através de uma comparação com o épico em questão, já foi objeto de crítica revisionista acerca de acepções tidas e havidas, até pouco tempo, como inquestionáveis sobre sua relação com o texto escrito do respectivo épico (vide SANKALIA, H. D. The Ramayana in Historical Perspective. Delhi: Macmillan India Limited, 1982).

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    7. Neste cenário, com certeza as tentativas arqueológicas de comprovar passagens do Rāmāyaṇa e do Mahābhārata constituem um movimento para subsidiar a validação dessas tradições, principalmente se nos atentarmos a desdobramentos fundamentalistas hindus de um passado relativamente recente da Índia, pertinentes ao próprio Rāma, que não apenas dá nome ao Rām Rājya Pariṣad (Conselho de Toda a Índia do Reino de Rāma), mas é apropriado como componente religioso de forte apelo político-militar, calculadamente extraído da cultura hindu. No dia 6 de dezembro 1992, grupos de seguidores de Rāma, pertencentes ao Viśva Hindū Pariṣad (Conselho Universal Hindu), derrubaram a mesquita Babri Masjid, no atual estado de Uttar Pradeś, mais especificamente na mesma cidade de Ayodhyā, onde se localiza o suposto lugar de nascimento de Rāma (Rām Janmabhūmi), proeminente cenário do Rāmāyaṇa de Vālmīki, pressionando o Governo da Índia a permitir a reconstrução de um templo hindu no mesmo local, visitado pela primeira vez por um primeiro-ministro indiano em 5 de agosto de 2020, na pessoa de Narendra Modī...

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    8. Num segundo momento, prof. André, acredito que um olhar periférico ao texto, dialógico com seu contexto histórico, sempre será bem-vindo para o nosso ofício de historiador, bem aos moldes das críticas feitas por você a ‘Il milione’ e apresentadas no canal Visões da Ásia (“A Viagem Que Nunca Existiu: Construções Orientalistas no Il Milione de Marco Polo”). Contrapor dados do texto examinado com pesquisas historiográficas, e também arqueológicas, sempre revelam horizontes de esclarecimento importantes para o historiador da Índia que, no horizonte acadêmico brasileiro, ainda se encontram muito sob uma certa tutela da filosofia especulativa ou da mera linguística analítica.

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    9. A inserção do último parágrafo no contexto mais amplo da Comunicação – “A sociedade agro-pastoril do mundo dos heróis estruturada em torno das linhagens dá lugar a sociedades mais claramente agrárias e ao surgimento de centros urbanos controlados pelo que visivelmente emerge como um sistema estatal – que no vale do Gaṅgā, neste período, era principalmente monárquico.” – se dá, prof. André, como uma ilustração que ratifica o parágrafo anterior, e também como uma síntese histórica da Comunicação em si, selando a percepção historiográfica de minha análise, pois esta citação engloba, ao meu ver com sucesso, as dimensões sociais, econômicas, geográficas e políticas do primeiro milênio E.C. no subcontinente indiano com os aspectos religiosos e culturais inerentes ao Rāmāyaṇa de Vālmīki.

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    10. Espero ter minimamente correspondido às expectativas de tuas perguntas, prof. André. Com certeza, muito mais coisas podem ser ditas e discutidas como resposta... agradeço novamente pela atenção dedicada a minha Comunicação... nos encontramos, com certeza, em outras sendas asiáticas... ;)

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    11. Eu que agradeço! esse debate podia ir junto com o texto! =D abraço!!!

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    12. Não, não, prof. André, NÓS participantes do Simpósio Eletrônico Internacional de História Oriental é que agardecemos pela realização de um evento como este.

      De fato, esse debate constitui dimensão preciosa do texto, mas aí, né, tem o limite de palavras, etc... =)

      Gostaria de registrar aqui, prof. André, meu sentimento de profunda realização que tenho de participar, como historiador, deste evento... simplesmente adoro essa semana do Simpósio... espero sempre poder contribuir de alguma maneira para nossos estudos historiográficos asiáticos...

      Mais uma vez, muitíssimo obrigado...!!!!

      Até a próxima, prof. André... ;)

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  3. Valéria Cristina da Silva7 de outubro de 2022 às 00:35

    Um texto excelente!!
    Escrever sobre a historiografia indiana, é um assunto que nos prende a leitura do início ao final.
    Haja vista, que tem um mistério, em descobrir algo que é antigo, mas que nos remete a trazer esse debate para os dias atuais.
    A dificuldade para muitos é a diferença de dharma e karma, são distintos, mas que causam confusão em quem não entende a cultura indiana.
    A cultura indiana, em especial a doutrina Hare Krishna, foi o tema do meu TCC, na graduação.
    Qual a diferença do dharma e kharma, em poucas palavras?
    Obrigada por compartilhar a cultura indiana.
    Como as distinguir em poucas palavras?
    Obrigada por compartilhar sobre a cultura indiana.

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    Respostas
    1. Prezada Valéria Cristina da Silva,

      espero que esteja tudo bem contigo.

      Desde já agradeço por suas palavras inspiradoras. Sim, é um assunto vastíssimo que nos prende mesmo, e, sim, com essa potencialidade de conjugar passado e presente recorrentemente...

      Bacana seu interesse pelo movimento dos Gauḍiya Vaiṣṇava... não é bem minha caminhada – não sou praticante hindu –, mas conheço pessoas maravilhosas do movimento aqui no Brasil... ;)

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    2. Prezada Valéria, tentarei expor aqui, da minha maneira, como compreendo as diferenças entre dharma e karma, a partir das perspectivas que minhas pesquisas sobre estes temas me possibilitaram caminhar (i.e. pesquisas sobre a ‘Ṛgveda Saṃhitā’ e a arqueologia antiga da Índia, sobre o ‘Mānava-Dharmaśāstra’ e o sistema ‘sistema varṇa-āśrama’, sobre as ‘Saṃnyāsa Upaniṣads’ e as tradições renunciantes hindus, e sobre o ‘Rāmāyaṇa de Vālmīki’ e a noção de tempo (kāla) nas tradições hindus...)

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    3. Para mim, karma é uma doutrina que reflete uma dinâmica existencial baseada numa reciprocidade cósmica, portanto orgânica, de formas de vida intrinsecamente vinculada à doutrina do saṃsāra, que prevê uma espécie de biografia transmigracional da alma hindu, imbuída de um horizonte de variação existencial circunscrito a um espectro de metempsicose que vai dos infernos (narakas) aos paraísos (svargas), passando pelas formas de vida animal e humana.

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    4. Dharma, em minha concepção, refere-se a um conjunto semântico propositivo de iniciativas humanas ou não – subentendendo-se aqui o arranjo cósmico que pode, muitas vezes, prescindir da existência humana para existir como tal, por vezes simbolizado pelo termo sânscrito ṛta, além do próprio dharma –, que visa a determinados fins almejados, segundo certas metodologias práticas a serem seguidas a partir de algumas ortodoxias estabelecidas. Trata-se de uma aspiração que só se realiza suficientemente dentro de uma plataforma dinâmica possibilitada pelo karma e pelo saṃsāra, pelo menos na cultura hindu.

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    5. Neste intuito, karma e saṃsāra configuram os incontornáveis meandros cósmicos pelos quais certas dinâmicas dhármicas calculadas circulam com determinados fins esperados... em poucas palavras, karma e saṃsāra são plataformas soteriológicas disponíveis para iniciativas programadas de ação do dharma.

      Obviamente, prezada Valéria, que é muito mais do que isso... ficaríamos aqui éons e yugas discutindo os desdobramentos e propensões de tudo isso... porém, em poucas palavras, é assim que consigo, hoje, responder a sua pergunta.

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    6. Agradeço novamente pela atenção dedicada a minha Comunicação... nos encontramos, com certeza, em outras veredas asiáticas, Valéria... ;)

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