DEMÔNIOS DA GUERRA: UMA BREVE ANÁLISE DO FILME ONIBABA (1964), DE KANETO SHINDO por Vinicius Maciel Braga


A leitura histórica feita a partir do olhar cinematográfico sugere uma série de debates acerca da utilização de filmes como fontes históricas ou até mesmo instrumentos de interpretação do passado, podendo ser imbuídos de certa transversalidade quanto aos seus gêneros [NAPOLITANO, 2022, p. 13]  ou desprovidos de tal circunstância. O presente trabalho possui o objetivo de analisar Onibaba, produção japonesa lançada pelo diretor Kaneto Shindo no ano de 1964, a partir de seu conteúdo enquanto um filme de “ambientação histórica”, baseando-se em um resumo geral acerca do enredo. O entendimento da relação Cinema-História é crucial para compreender a obra enquanto uma possível fonte histórica, sobretudo pelo englobamento de elementos significativos do período retratado, presentes de forma explícita e também através de diálogos acerca do contexto em destaque no decorrer da obra. Além disso, a importância de entender a película como um agente da História [BARROS, 2014, p. 26], papel determinado pelas denúncias direcionadas à guerra e suas consequências devastadoras, possui estimado valor para entender a relação da obra com o contexto histórico no qual foi lançada.

 

Partindo dessa premissa, o artigo em questão irá se debruçar sobre o método da análise fílmica, caracterizado por investigar as principais nuances contidas em uma obra cinematográfica. O texto mostrará os detalhes seletos acerca da representação dos conflitos e da contextualização presente na trama em destaque, apontando os fatos retratados na obra e interligando-os a partir do diálogo com as intenções de seu realizador. Baseando-se nessa questão, será possível entender e perceber as principais questões travadas entre a narrativa contida em Onibaba e a denúncia presente nas entrelinhas, levando tal ponto em consideração no decorrer do texto e, dessa forma, permitindo a execução da análise histórica. A partir de percepções alocadas no limiar da teoria e da metodologia, o trabalho possibilitará ao leitor uma breve compreensão acerca da importância do filme histórico e suas contribuições para o aprofundamento da análise sobre o período destacado.         

 

Síntese da obra 

Onibaba é um filme de drama histórico lançado no ano de 1964 e dirigido por Kaneto Shindo (1912-2012), cuja sinopse retrata a luta pela sobrevivência de uma senhora (Nobuko Otowa) e sua nora (Jitsuko Yoshimura) durante o período de guerra civil que o Japão vivenciou durante o século XIV. Ambas as mulheres, cujos nomes não são citados no decorrer da obra, matam e roubam os pertences de guerreiros para trocar por mantimentos em posse de um homem chamado Ushi (Taiji Tonoyama).

 

Para se livrarem dos cadáveres, as mulheres os lançam em um buraco, elemento presente em praticamente toda a película e cujo simbolismo é mostrado em seu início. Essa rotina tortuosa sofre uma completa reviravolta com o retorno de Hachi (Kei Sato), vizinho das mulheres, que foi convocado para a guerra junto a Kichi, o filho e marido que não voltou. Segundo um breve relato, seu companheiro é assassinado durante uma fuga, sendo Hachi o único a sobreviver. O homem passa a seduzir a viúva, que depois de tanta insistência, acaba cedendo às investidas.

 

Fonte: Onibaba [SHINDO, 1964]

 

As fugas noturnas da jovem para a cabana do homem se tornam motivo de tensão (sexual, por vezes) para a sua sogra, que também passa a tentar atrair Hachi, não obtendo sucesso. Em uma noite, ao tentar flagrar os dois amantes, a senhora é surpreendida por um samurai (Jukichi Uno) perdido que ostenta uma máscara hannya. Na tradição do (teatro) Nô, a máscara é uma expressão externa do ego interior, de forma que a aparência exterior é de fato uma subjetividade interna [BALMAIN, 2013, p. 18, tradução nossa]. 

 

Para justificar o uso do apetrecho, o guerreiro diz ser um homem de feições muito bonitas e coage a senhora para que seja guiado para fora do campo (cenário principal do filme), mas em uma armadilha, acaba sendo levado ao buraco citado anteriormente. No dia seguinte, a anciã desce às profundezas da escavação para roubar a máscara e, ao removê-la, depara-se com um homem de rosto desfigurado. Temendo que a relação com a nora seja totalmente desintegrada ao observar o entrosamento aumentando com seu vizinho, a sogra passa a assombrar a jovem viúva contando sobre a existência de um demônio na área do campo.

 

Visando atrapalhar completamente a relação recém-constituída, a senhora decide vestir a máscara do finado samurai para assustar sua nora durante suas fugas noturnas, fazendo-a acreditar que existe, de fato, um demônio naquele lugar. O primeiro susto ocorre com sucesso, porém ao repetir tal feito, uma forte tempestade cai sobre a região, e para a dupla surpresa da anciã, o fato não impede o casal de se amar em meio ao campo, e simultaneamente, a água da chuva termina por unir a máscara ao rosto da mulher, tornando-a difícil de ser removida. Retornando para a sua cabana, Hachi se depara com um homem roubando sua comida e acaba sendo repentinamente assassinado pelo desertor.

 

A jovem viúva volta a sua cabana e se surpreende com a mesma figura demoníaca vista nas ocasiões anteriores, sem saber que se trata de sua sogra. A velha mulher tenta convencer sua nora de que ela não está diante de um demônio, e pede ajuda a jovem para que a máscara seja retirada. Assim como o finado samurai, a senhora ganha um rosto desfigurado e planta na consciência da nora que a sogra é uma entidade demoníaca, que insiste em lhe convencer do contrário enquanto ocorre a fuga da jovem mulher, culminando na cena final da obra onde ambas saltam acima do buraco.

 

Contexto histórico da obra

Os diálogos presentes em Onibaba revelam claramente o período no qual a obra se situa. Na cena em que as duas mulheres chegam ao recinto de Ushi para efetuar a troca dos pertences dos guerreiros mortos por comida, o personagem traz a notícia de que Quioto foi incendiada e o imperador fugiu para o Monte Yoshino. Logo em seguida, a partir do relato de Hachi no momento em que faz sua refeição junto a anciã e sua nora, o homem afirma que ele e Kichi foram forçados a lutar pelo exército Ashikaga, mostrando que o enredo do filme se passa no século XIV, período onde o Japão foi governado pelo xogunato homônimo e conhecido também como período Muromachi (1333-1568).

 

No mesmo relato, o personagem diz que foram derrotados em uma das batalhas e, em seguida, foram raptados e coagidos a lutar pelo exército Kusunoki afirmando que o poder sofreu uma grande cisão, onde um imperador fugiu para o Monte Yoshino e há outro homem ocupando o Trono do Crisântemo. A fala do personagem em questão referencia o refúgio do Imperador Go-Daigo após Ashikaga Takauji rebelar-se contra sua autoridade, conforme está presente nos escritos do historiador britânico Kenneth Henshall:   

 

“Este tomou então Quioto, obrigando Go-Daigo a fugir para Yoshino, nas montanhas de densas florestas a cerca de cem quilômetros para sul. Na própria cidade de Quioto, Takauji  instalou imediatamente  como imperador um membro de um ramo rival da família imperial, Komyo (1332-1388, r. 1336-1348), que, por fim, em 1338, lhe conferiu o muito ambicionado título de xogum” [HENSHALL, 2012, p. 60].

 

O clã Ashikaga atingiu um elevado grau de crise, alimentado pelos conflitos com a população camponesa por conta das grandes taxações realizadas. Conforme pontuado pelo historiador Lucas Miguel Brandão da Silva: 

 

“O descontentamento é geral, com os camponeses realizando revoltas e os comerciantes ricos subornando funcionários do governo para evitar taxações. Essa instabilidade do controle dos Ashikaga chega a um outro nível com a Guerra de Onin, em 1467, um conflito iniciado numa disputa de terras que cresce a nível nacional, envolvendo o Shogun e o Imperador. A partir desse conflito, o poder dos Ashikaga é seriamente fragilizado, e o Shogunato começa cada a vez mais ter dificuldades para controlar os senhores locais, os daimyos, e seu exército de samurais, que começam a guerrear com outros senhores, buscando mais poder e mais influência” [SILVA, 2019, p. 01-02].

 

O trecho supracitado exprime também o grau de miséria no qual se encontrava a população do campo durante a guerra, explicitado na obra pela situação vivida pelas protagonistas. A crise instaurada foi consequência dos inúmeros conflitos que, por vezes, resultaram em deserção e disputas internas dentro dos próprios exércitos, fator colocado em voga no diálogo entre a senhora e o guerreiro mascarado antes de encontrar seu destino final. Durante sua fala, o personagem revela que veio de uma boa família e que havia perdido vários homens durante as batalhas anteriores, reafirmando a constatação da fragilidade na qual os daimyos se encontravam diante do contexto retratado.

 

Onibaba e a relação Cinema-História

A relação Cinema-História é marcada por inúmeras visões acerca do uso fílmico, seja como uma fonte histórica, seja como agente da própria História. Entretanto, vale destacar as semelhanças e diferenças entre a narrativa histórica e a narrativa cinematográfica presentes em diversas discussões teóricas e metodológicas. Conforme pontua Bruno José Yashinishi [2020], o cinema é capaz de trazer em si uma visão sobre a história, seja através da tentativa de representar um determinado fato ou tempo passado ou sobre a captação do tempo presente de sua produção [YASHINISHI, 2020, p. 419]. Para o historiador José D’Assunção Barros:

 

“Se o Cinema é ‘agente da História’ no sentido de que interfere direta ou indiretamente na História, ele também é interferido todo o tempo pela História, que o determina nos seus múltiplos aspectos. Vale dizer, o cinema é ‘produto da História’ – e, como todo produto, um excelente meio para a observação do ‘lugar que o produz’, isto é, a Sociedade que o contextualiza, que define a sua própria linguagem possível, que estabelece os seus fazeres, que institui as suas temáticas. Por isto, qualquer obra cinematográfica – seja um documentário ou uma pura ficção – é sempre portadora de retratos, de marcas e de indícios significativos da Sociedade que a produziu” [BARROS, 2014, p. 26].

 

É válido ressaltar, sobretudo, o importante papel que o Cinema exerce no desenvolvimento  de uma consciência histórica, independente se o conteúdo da trama retratada é de caráter real ou fictício. O filme também é considerado um produto histórico, ou seja, também é fruto do período no qual é introduzido. Onibaba é uma produção lançada durante o período que sucedeu a Segunda Guerra Mundial, época marcada pela reconstrução do Japão em todas as suas esferas. Compreendendo a partir dessa ótica, tornam-se perceptíveis críticas direcionadas a guerra e suas consequências no decorrer da película, contendo referências aos traumas vivenciados pela população nipônica durante o período belicoso.

 

Uma das principais características do longa-metragem está na maquiagem utilizada para retratar as faces deformadas da senhora e do samurai após a remoção da máscara. Segundo o diretor Kaneto Shindo, a representação das feridas foi baseada nas sequelas físicas geradas pelos ataques às cidades de Hiroshima e Nagasaki [McDONALD, 2006, p.118]. Este mesmo fator é evidenciado pela filmografia do próprio realizador, que além de ter nascido na primeira cidade vitimada pela bomba atômica, também trabalhou em obras que denunciam de maneira explícita os horrores desencadeados pela explosão, como é o caso de “Filhos de Hiroshima” (1952), lançado em período posterior a ocupação estadunidense [BO, 2016, p. 108].

 

Considerações finais

Pensar Onibaba enquanto um exemplo de película histórica remete a necessidade de analisar cada um de seus pormenores, desde o retrato de um país em guerra e as condições de pobreza na qual os personagens principais se encontram, ao pano de fundo onde a realização do filme está inserida. Conforme exposto neste trabalho, uma obra cinematográfica também é fruto direto da sociedade que a produziu, podendo utilizar-se de elementos fictícios e períodos cronológicos distintos para indicar o funcionamento de sua referida trama.   

 

A obra dirigida por Kaneto Shindo pode ser interpretada não apenas como uma forma de estabelecer um exercício de entendimento do passado outrora vivido pelo povo japonês, mas também busca repassar aos espectadores elementos latentes de um período caracterizado pela reestruturação de toda uma nação, mostrando os traumas evidentes que os conflitos intermitentes podem causar em uma população inteira, afetando todos as esferas sociais e revelando um profundo abismo entre os menos favorecidos e os senhores das armas e do poder, onde os únicos que possuem seu destino reservado são os mortos, tal qual aqueles que foram lançados ao abismo pela senhora e sua nora.

 

Referências

Vinicius Maciel Braga é graduado em Licenciatura em História pela Universidade Federal do Amazonas.

 

BALMAIN, Colette. Introduction to Japanese Horror Film. Edinburgh University Press, 2008.

 

BARROS, José D’Assunção. Cinema-História: múltiplos aspectos de uma relação. In: Revista Dispositiva, PUC Minas, v. 3, n. 1, p. 17-40, 2014.

 

BO, João Lanari. Cinema japonês: filmes, histórias, diretores. São Paulo: Giostri, 2016.

 

HENSHALL, Kenneth G. História do Japão. 2° edição. (História narrativa: 17). Lisboa: Edições 70, 2014.

 

McDONALD, Keiko I. Reading a Japanese Film: Cinema in Context. Honolulu: University of Hawaii’s Press, 2006.  

 

NAPOLITANO, Marcos. Variáveis do filme histórico ficcional e o debate sobre a escritura fílmica da história. In: História, Questões e Debates, Curitiba, v. 70, n. 1, p.12-44, 2022.

 

ONIBABA. Direção: Kaneto Shindo. 102 minutos. Japão, 1964.  

 

SILVA, Lucas Miguel Brandão da. A Representação do Povo Japonês através dos relatos do Jesuíta Luís Fróis. In: 2° ENCONTRO INTERNACIONAL HISTÓRIA & PARCERIAS. 2019, Rio de Janeiro. Anais eletrônicos. p. 01-02. Disponível em: https://www.historiaeparcerias2019.rj.anpuh.org/resources/anais/11/hep2019/1569811419_ARQUIVO_2a6ee743481923b6a4f101d33e849620.pdf. 

 

YASHINISHI, Bruno José. A relação Cinema-História: fundamentos teóricos e metodológicos. In: Em tempo de Histórias - Revista do Corpo Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UnB, Brasília, n. 37, p. 408-422, 2020.

2 comentários:

  1. Olá!

    Texto e reflexões bem interessantes.

    É possível identificar na película (ainda que de forma "en passant") críticas à Guerra Fria, período no qual o filme foi realizado?

    Grato pela atenção.

    Saudações!

    Willian Spengler

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    1. Saudações, Willian!

      De fato, "Onibaba" foi realizado durante o período da Guerra Fria. Entretanto, é possível identificar na obra críticas severas aos conflitos bélicos feitas de maneira mais generalizada, ainda que se baseie em um período histórico específico para formular sua trama. Conforme exposto no trabalho, estamos falando de um momento onde o Japão vive sua fase de reconstrução após vivenciar a guerra, e este fator acaba sendo de extrema importância para compreender as nuances expostas ao longo do filme. Espero ter elucidado sua dúvida.

      Assinado: Vinicius Maciel Braga.

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