A SEPULTURA DO HOMEM DE YINGPAN: CONTATOS CULTURAIS HELENÍSTICOS E CHINESES? por Cristian de Silveira

 

As conquistas de Alexandre, o Grande, no final do quarto século Antes da Era Comum [A.E.C] marcaram um período de grandes influências helenísticas ao longo dos territórios que centralizaram essas conquistas militares. As regiões da Ásia Ocidental, Meridional e Central onde se localizava o Império Aquemênida, conquistado por Alexandre, mantiveram uma influência helenística em suas culturas mesmo séculos após a morte desse conquistador. Os reinos que sucederam o império de Alexandre na região da Ásia Central servem para evidenciar essa constatação, com o chamado reino Greco-Báctrio sendo referido por autores como Joe Cribb como: “um grande centro cultural, de onde a cultura grega irradiava através da Ásia Central” [CRIBB; HERMANN, 2007, p. 63]. O fim dos reinos gregos na região da Ásia Central e Meridional deu início a um período de formação de novos reinos e impérios ao longo desse mesmo território, formados principalmente por grupos originalmente nomádicos, como foi o caso do Império Kushan e do Império Parta [BOARDMAN, 2015; GOODY, 1996].

 

As influências culturais helenísticas dentro dos Impérios Parta e Kushan, mesmo com a ruptura do controle grego nessas regiões, se mantiveram, como pode ser observado nas produções imagéticas budistas de Gandhara nos primeiros séculos da Era Comum, no Império Kushan, demonstrando uma influência helenística incorporada às tradições budistas existentes na região. Essas influências helenísticas, porém, precisam ser vistas como fatores que superam as descrições que as identificam como simples “continuidades” da presença da cultura grega na região, e que podem demonstrar processos de ressignificação e de transformação de produções imagéticas, que as diferenciariam das produções gregas que as antecederam ou que foram concomitantes temporalmente em seu processo de produção. E dessa forma, demonstrando a sua adequação à realidade cultural local complexa onde as produções imagéticas eram produzidas. Esse processo seria o que Jerry H. Bentley [1993], em suas discussões sobre contatos culturais na Antiguidade, chamaria de sincretismo cultural, sendo esse um “acordo” ou uma forma de mediação entre as culturas de diferentes grupos envolvidos em um processo constante e interminável entre as relações de diferentes grupos em contato, que age como um reflexo dos fatores econômicos, políticos e sociais estabelecidos em diferentes regiões e entre esses diferentes povos e civilizações. Uma das causas para esse processo existente de transformações e ressignificações das produções culturais entre esses diferentes grupos foi, por exemplo, o desenvolvimento das chamadas Rotas da Seda, que formavam rotas transcontinentais que iam desde o Império Romano até o Império Chinês nesse contexto de desenvolvimento e de contatos entre diferentes tradições de produções imagéticas. Os contatos entre diferentes culturas desenvolvidos a partir das Rotas da Seda nesse período também podem ser evidenciados pelas possíveis similaridades apontadas entre as produções imagéticas de Gandhara, recém descritas, com produções imagéticas romanas do mesmo período [BARISITZ, 2017, p. 42; BEHRENDT, 2007, p. 4 e 39; BENTLEY, 1993, p. 2-38; CRIBB, 2021, p. 669-670 e 675-677; CRIBB; HERMANN, 2007, p. 62-64; DECAROLI, 2015, p. 13-14; LIU, 2010, p. 43; MORRIS, 2021, p. 583-584 e 586-590].

 

Dentro desse contexto de sincretismos culturais e de grandes rotas transcontinentais que ligavam as grandes civilizações no período dos últimos séculos A.E.C e dos primeiros séculos da Era Comum, a região de Xinjiang, atual província da China, se estabelece como um ponto de conexão entre o Império Chinês com a região da Ásia Central e, consequentemente, com as civilizações ali inseridas e com as rotas comerciais que atravessavam essas regiões. Dessa forma, essa região forma uma ligação entre o Extremo Oriente, na figura do Império Han da China, que controlava a região de Xinjiang nesse período, com a região da Ásia Central e com as civilizações nela inseridas, como o Império Kushan, e em um grau menor o Império Romano, estando este nas margens ocidentais das Rotas da Seda. A região de Xinjiang se sobressai como uma região de grandes descobertas arqueológicas dentro desse recorte temporal da Antiguidade, com numerosos achados têxteis mantendo um nível de conservação bem alto, devido ao seu clima árido. Assim sendo, o presente trabalho busca analisar um destes achados arqueológicos, o chamado de “Homem de Yingpan”, sendo este um homem sepultado encontrado em Yingpan, que possui em seu sepultamento exemplares únicos de vestimentas, tecidos e formas variadas de produções imagéticas que dão um vislumbre da realidade dos contatos culturais que buscamos discutir a partir de interpretações iconológicas das representações presentes nesses têxteis, objetos e na forma que esse sepultamento foi feito [BARISITZ, 2017, p. 33-37 e 41; BOARDMAN, 2015; GOODY, 1996; HANSEN, 2012, p. 32; LIU, 2010, p. 9-11; NATIONAL MUSEUM OF CHINESE HISTORY, 2002; WANG, 2022].

 

Com o intuito de analisar questões sobre sincretismos culturais que abordem produções imagéticas de influências chinesas e helenísticas, visamos assim fornecer uma perspectiva que lide com questões de contatos culturais e de ressignificações de símbolos, de forma a produzir uma visão que fuja do eurocentrismo e amplie a dimensão do protagonismo dos povos locais a serem lidados, sendo eles as populações presentes onde se localiza atualmente a província de Xinjiang, na China, ou seus arredores imediatos. Procuramos, assim, problematizar questões sobre os significados carregados dentro das produções imagéticas; como elas se assemelham ou se diferenciam de produções helenísticas próprias; como os aspectos culturais chineses e helenísticos dialogam entre si; e qual a importância que as sociedades locais davam para os aspectos culturais helenísticos e chineses que faziam parte dessa possível realidade plural evidenciada em Xinjiang.

 

O Homem de Yingpan

O Homem de Yingpan é datado entre 206 A.E.C. e 420 E.C.. Ele foi encontrado em uma escavação em 1995, na denominada de Tumba 15, em Yingpan, Weili. Essa figura pertence ao acervo do Instituto de Arqueologia de Xinjiang [NATIONAL MUSEUM OF CHINESE HISTORY, 2002, p. 320].

 


Figuras 1 e 2: Homem de Yingpan, parte 1 e 2. Fonte: National Museum of Chinese History - Ancient Relics Administration Bureau of Xinjiang Uygur Autonomous Region - Mountain Tianshan. Ancient Roads: The Meeting of East and West - The Extraordinary Cultural Relics from the Silk Road in Xinjiang. 2002. p. 320-321.

 

Figura 3: Homem de Yingpan, parte 4. Fonte: National Museum of Chinese History - Ancient Relics Administration Bureau of Xinjiang Uygur Autonomous Region - Mountain Tianshan. Ancient Roads: The Meeting of East and West - The Extraordinary Cultural Relics from the Silk Road in Xinjiang. 2002. p. 323.

 

A túnica, que cobre seu corpo, reflete um estilo de túnica produzido no período e território do Império Kushan [YATSENKO, 2012, p. 46]. As representações são padronizadas em duplas ou individualmente, com as representações em duplas sendo espelhadas, isto é, sendo idênticas em características e posição, porém opostas direcionalmente, e com tanto às representações em duplas ou individuais se repetindo numa faixa horizontal inúmeras vezes. A maior parte das representações são figuras de guerreiros em postura de combate, trajando diferentes armamentos e em diferentes posições de batalha, com alguns em aparente posição de defesa, e outros de ataque. Sendo os guerreiros imberbes, demonstram sua aparente juventude [HURWIT, 2007, p. 48]. As capas ou mantos em uso por alguns dos guerreiros provavelmente são clâmides, que “acabam enfatizando sua nudez”, dessa forma reforçando a deliberada exposição dos corpos nus dos guerreiros [PALAGIA, 2000, p. 185-186; HURWIT, 2007 p. 47]. As árvores representadas se assemelham muito com romãzeiras, e agem como uma espécie de linha de divisão entre todas as faixas horizontais de todos os outros tipos de figura. Segundo Jones [2009], as representações dessas romãzeiras seriam possivelmente de origem persa, e as representações de animais na túnica, sendo eles o touro e o bode, seriam derivados das artes com representações animais que já existiam na região da Ásia Central [JONES, 2009, 28-29].

 

Interpretação iconológica

Como já salientado por autores como Jones, uma das posições tomadas por um dos grupos de guerreiros na túnica se assemelha muito com um mosaico do fim do quarto século A.E.C., encontrado na chamada "Casa do Dionísio”, em Pela. Esse mosaico apresenta uma cena de caça, provavelmente representando uma caçada empreendida por Alexandre, o Grande. As figuras na túnica que especificamente mais se assemelham com as desse mosaico são as dos guerreiros trajando um clâmide e brandindo uma lança, que se assemelham com a figura no mosaico que provavelmente representa o próprio Alexandre. Os dois caçadores presentes no mosaico também compartilham a caracterização imberbe presente em todos aqueles representados na túnica, que, como já exposto, em conjunto com o uso do clâmide e a nudez das figuras, podem todas serem formas de representação da juventude das figuras expostas [LEE, 2015, p. 40; PALAGIA, 2000, p. 185-186; JONES, 2009, p. 28-29; HURWIT, 2007, p. 47-48 e 53].

 

Figura 4: Mosaico em Pela, do fim do quarto século A.E.C., mostrando dois macedônios caçando um leão. Fonte: Pella Archaeological Museum. [Disponível em: <https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Lion_hunt_mosaic_from_Pella.jpg>. Acessado em: 10/04/2022]

 



Figuras 5 e 6: Recorte do Homem de Yingpan, parte 4. Fonte: National Museum of Chinese History - Ancient Relics Administration Bureau of Xinjiang Uygur Autonomous Region - Mountain Tianshan. Ancient Roads: The Meeting of East and West - The Extraordinary Cultural Relics from the Silk Road in Xinjiang. 2002. p. 323./ Recorte do mosaico em Pela, do fim do quarto século A.E.C., mostrando dois macedônios caçando um leão. Fonte: Pella Archaeological Museum. [Disponível em: <https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Lion_hunt_mosaic_from_Pella.jpg>. Acessado em: 10/04/2022]

 

A nudez presente tanto em todas as figuras da túnica quanto do mosaico também podem ser significadas como uma representação do chamada de “nu heroico”, que seria uma forma artística de demonstrar uma figura poderosa e exemplar dentro do imaginário grego:

 

“O princípio básico da nudez heróica na arte Grega pode em qualquer caso ser declarado quase silogisticamente: deuses e heróis são normalmente representados nus, e mortais que desejam ser classificados entre os heróis e aqueles que foram de fato heroicizados (e.g., guerreiros que caíram em batalha) devem estar nus, também. Dessa forma, nus masculinos (particularmente aqueles envolvidos ou que já estão entrar em combate) são heróicos. Implicitamente, então, existem dois tipos de nudez heróica. Existe, primeiro, o tipo que heróis mitológicos como Héracles ou Teseu “vestem” porque eles são realmente heróis mitológicos - nudez é seu atributo. Existe, em segundo, o tipo de nudez que mortais vestem para imitar heróis específicos ou alegar um status heróico generalizado. Em qualquer caso, nudez é pensada como heróica porque ela revela o corpo ideal, jovem, poderoso como fonte de beleza e areté, que heróis possuem. E é heróico porque para entrar em competição ou combate completamente exposto, e, consequentemente, completamente vulnerável (ou quase completamente vulnerável, já que muitos guerreiros estão equipados com escudos, elmos, e capas que, voando sobre seus corpos, acabam enfatizando sua nudez) é para demonstrar um tipo especial de energia e bravura transcendente; o sucesso depende dos poderes físicos e areté de um indivíduo, ao invés de fatores externos como armas ou armaduras.” [HURWIT, 2007, p. 46-47, tradução nossa]

 

A definição do nu heróico, como o próprio Hurwit discorre, acaba não descrevendo todos os contextos possíveis nos quais representações de figuras nuas poderiam se apresentar dentro da arte grega. A nudez poderia ser uma forma de representar juventude, como já exposto acima; de reforçar a posição subalterna de uma figura dentro de sua sociedade; de expor a vulnerabilidade ou derrota de uma figura; ou até mesmo simplesmente como forma de diferenciação de múltiplas figuras dentro de uma obra [HURWIT, 2007, p. 52-57].

 

Dessa forma, o nu heroico se mantém como uma entre diversas possibilidades para a nudez masculina ser representada na arte grega. O nu heroico e a nudez como representação da juventude, porém, se destacam como as duas possibilidades que mais se encaixam nas representações dos guerreiros presentes na túnica. A nudez heróica, pelas posições de combate, de avanço ou recuo, em que os guerreiros são representados, e a nudez da juventude, pela condição imberbe de todos os guerreiros, e o uso do clâmide, outro possível indicador de juventude, por alguns deles.

 

Além disso, diversos autores, como Jones, Sheng, Mair, Wang, Barber, e Hansen, que descrevem e analisam as imagens presentes na túnica, se referem aos guerreiros como “putti” ou “cherubim”, provavelmente considerando as proporções mais compactas que os corpos dos guerreiros dispõem como uma característica que os enquadra na definição desses deuses de aparência infantilizada, mais conhecidos dentro da tradição grega como Erotes (HALL, 1995, p. 136). No contexto grego, os Erotes eram retratados ocasionalmente como “elementos decorativos” em representações artísticas, participando de obras de contexto dionisíaco ou até mesmo em representações de caçada como os próprios caçadores, o que comparativamente se alinharia com as representações presentes na túnica. Eles também se mostravam como elementos decorativos em sarcófagos romanos, o que reforça o argumento da túnica ter sido produzida para o uso do Homem de Yingpan em sua sepultura, ao mesmo tempo que também reforça essa caracterização dos guerreiros na túnica como Erotes. Esse fator, porém, seria uma possibilidade somente se a realidade cultural onde o Homem de Yingpan estava inserido abordasse a representação de Erotes como decorações funerárias de forma similar aos romanos, e também transformasse esse tipo de decoração como algo viável e adequado a ser representado num vestuário de um defunto, o que o diferenciaria nesse sentido em seu uso feito pelos romanos, mesmo que a abordagem geral fosse parecida [ZHANG, 2019, p. 58; JONES, 2009, p. 28-29; SHENG, 2010, p. 39-40; MAIR, 2016, p. 27; WANG, 2022, p. 12; BARBER, 2014, p. 38; HANSEN, 2012, p. 40-41; LEE, 2015, p. 166; AURENHAMMER, 2018, p. 163-165].

 

Alguns dos aspectos presentes nos guerreiros na túnica se opõem a caracterizações mais comuns dos Erotes na arte grega. A ausência de asas, característica mais reconhecível dos Erotes em geral, bem como a aparência de uma musculatura bem desenvolvida, um ponto discordante da aparência infantil costumeira na caracterização dos Erotes, podem servir como pontos de discussão desse tema. Questões  já abordadas, como o uso da nudez para caracterizações que procuram representar a juventude e/ou a heroicidade de homens ou deuses, bem como o uso do clâmide por algumas das figuras da túnica, que como já visto pode ser um indicador de juventude, porém de uma juventude mais ligada à jovens adultos do que a de crianças pequenas os quais a representação dos Erotes normalmente se espelha são todos fatores dessa discussão que mostram que a caracterização dos guerreiros não é tão simples quanto essa perspectiva trazida por esses inúmeros autores se faria pensar [HALL, 1995, p. 136; LEE, 2015, p. 40; HURWIT, 2007, p. 46-47 e 53].

 

Além da túnica e de suas representações, outros objetos ou vestuários presentes na sepultura do Homem de Yingpan podem realçar muitas considerações sobre como uma diversidade cultural está aparente nessa sepultura, e o que essa diversidade cultural pode nos demonstrar. Nas práticas funerárias feitas para o sepultamento do Homem de Yingpan, por exemplo, é aparente a similaridade das técnicas tomadas para o sepultamento do corpo com as estipulações estabelecidas para realizar um sepultamento segundo a tradição confuciana, a respeito de cobrir o rosto, enterrar o corpo completamente vestido, cobrir o corpo por inteiro em um manto de seda, entre muitas outras características mais específicas. Além disso, crenças espirituais chinesas também são possivelmente evidenciadas em alguns dos outros objetos da sepultura. Padrões ou estilos decorativos no próprio caixão são vistos como possíveis símbolos que remetem ao uso de jade nos processos de sepultamento no período da Dinastia Han, principalmente pela nobreza [WANG, 2022, p. 10]. Assim o “padrão no caixão do Homem de Yingpan carrega o significado simbólico de preservar o corpo eternamente para que assim sua alma e espírito alcancem os céus” [WANG, 2022, p. 10].

 

Um brocado encontrado junto com o Homem de Yingpan também demonstra uma influência chinesa, apresentando dois tipos de logogramas chineses que vão se repetindo por sua extensão, que provavelmente carregavam significados que remetiam a desejos de saúde que o Homem de Yingpan possuía enquanto vivo. Um travesseiro também presente na sepultura possui as figuras de algumas criaturas mitológicas chinesas, como o Tigre Branco do oeste, o Dragão Azul do leste, a Tartaruga Negra do norte e o Pássaro Vermelho do sul, que compunham as quatro criaturas que são representados como os guardiões dos quatro pontos cardeais segundo a tradição chinesa, porém com essa representação no travesseiro substituindo a Tartaruga Negra do norte por um grifo, o que pode também demonstrar uma modificação que ocorreu devido a esses contatos proporcionados pelas Rotas da Seda [WANG, 2022, p. 9-12].

 

Como já observado durante a análise iconográfica, Yatsenko discorre sobre o estilo da túnica do Homem de Yingpan se assemelhar com o estilo de túnicas usadas pelos membros do Império Kushan, que existiu desde o primeiro século E.C. até o quarto século E.C.. Testes de datação da sepultura marcam uma datação do terceiro ao quarto século E.C., formando assim uma interpolação temporal entre essas duas abordagens [WANG, 2022, p. 4]. Porém, de forma geral, a questão sobre as origens do Homem de Yingpan ainda é muito complexa, não possuindo nenhuma perspectiva amplamente aceita sobre o assunto. Assim sendo, podemos explorar algumas dessas perspectivas:

 

“A opulência e boa qualidade dos objetos enterrados com o Homem de Yingpan indicam que ele deveria ter tido um alto status social antes de sua morte. Dada a importância da cidade de Yingpan, como um centro comercial nas Rotas da Seda, os escavadores que descobriram o Homem de Yingpan sugeriram que ele era um rico mercador do Ocidente. Outros propuseram que o Homem de Yingpan possa ter sido um mercador sogdiano, já que os sogdianos (um povo de língua iraniano cuja terra se estabelecia próxima de Samarcanda, no que hoje é o Uzbequistão) foram os comerciantes mais ricos ao longo das rotas. [...] a comparação do sepultamento do Homem de Yingpan com outros sepultamentos contemporâneos ao seu tempo em Gansu também sugerem que o Homem de Yingpan era possivelmente um oficial militar do governo da China Central. Mais evidências de apoio vem da braçadeira bordada que foi enterrada com o Homem de Yingpan, já que braçadeiras coloridas podem ter sido usadas por soldados, como proteção de forças malignas em Xinjiang na antiguidade. Uma explicação adicional seria que o Homem de Yingpan era um nobre ou até mesmo um rei de um estado próximo chamado de Shan (também conhecido como Moshan), e a antiga cidade de Yingpan foi sugerida como a possível cidade capital deste estado. Uma explicação alternativa é que o Homem de Yingpan fazia parte de uma família nobre local que foi deslocada da Báctria para o sul da Bacia do Tarim depois do desencadeamento de conflitos no Império Kushan no final do segundo século E.C., devido à popularidade das artes de Kushan nessa área durante as Dinastias Han e Jin. A evidência isotópica apresentada aqui [...] indica que durante seus últimos três ou quatro anos de vida, o Homem de Yingpan não era um viajante ou mercador nas Rotas da Seda, pelo menos durante esse período de sua vida. Assim sendo, o Homem de Yingpan aparenta ter sido um morador local, possivelmente um oficial governamental ou da realeza dessa região da Bacia do Tarim, talvez do estado próximo de Shan. Isso pode explicar o porquê ele foi enterrado no cemitério de Yingpan, por se enquadrar como capital desse antigo estado.” [WANG, 2022, p. 12-13, tradução nossa]

 

Considerações Finais

A sepultura do Homem de Yingpan representa um dos achados mais únicos e extraordinários de contatos culturais que podem ser observados através de representações artísticas dentro do contexto de um único achado arqueológico das Rotas da Seda na Antiguidade. Algumas das representações presentes na túnica do Homem de Yingpan apresentam certa similaridade com exemplos de produções gregas e romanas existentes, porém fica salientado que a diferenciação presente reforça uma singularidade dos significados e motivações por trás da produção deste achado de Xinjiang. Destacando, também, o contato direto apresentado na sepultura de produções vindas de uma esfera cultural chinesa com essas produções assemelhadas a um contexto helenístico, podemos considerar que esses diferentes tipos de produções imagéticas não eram, pelo menos dentro desse achado específico, vistas como antagônicas, sendo esse contato direto viabilizado por um processo de sincretismo ou adaptação existente do contexto cultural presente em Xinjiang à realidade de contatos culturais proporcionada pelas Rotas da Seda.

 

Referências

Cristian de Silveira é Licenciado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e atualmente é graduando em Bacharelado em História pela mesma instituição.

Este artigo foi produzido a partir de um recorte do meu Trabalho de Conclusão de Curso para a graduação de licenciatura em história na Universidade Federal do Rio Grande do Sul em 2022.

 

AURENHAMMER, Maria. Sculpture in Roman Asia Minor. Proceedings of the International Conference at Selçuk, 1st - 3rd October 2013, SoSchrÖAI 56. p. 161–173. 2018.

 

BARBER, Elizabeth Wayland. More Light on the Xinjiang Textiles. In MAIR, Victor H.; HICKMAN, Jane. Reconfiguring the Silk Road: New Research on East-West Exchange in Antiquity. The Papers of a Symposium Held at the University of Pennsylvania Museum of Archaeology and Anthropology, March 19, 2011. University of Pennsylvania Museum by the University of Pennsylvania Press. 2014. p. 33-39.

 

BARISITZ, Stephan. Central Asia and the Silk Road: Economic Rise and Decline over Several Millennia. Springer International Publishing AG, Cham, Switzerland. 2017.

 

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6 comentários:

  1. Caro Cris, obrigado por seu texto, em que ressalte-se a qualidade da pesquisa. Queria perguntar o seguinte: em sua opinião, a múmia denota um trânsito ou mesmo, uma pluriversidade étnica nas fronteiras chinesas? Alguns anos atrás escrevi sobre o tema, em um artigo intitulado 'Um novo embranquecimento da história', em que criticava a visão de V. Mair de que essas múmias mostrariam uma origem caucasóide da civilização chinesa - o que no meu ver, indicava falta de contexto e carbono 14, rs. Contudo, não se pode negar um trânsito cultural rico, que continuaria a existir em períodso posteriores. É possível identificar essas origens? Grato! André Bueno

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    1. Acredito que a minha resposta esteja com problemas no envio devido ao seu tamanho, então tentarei dividi-la em dois comentários rs.
      Muito obrigado pelos elogios professor, e fico grato também pela possibilidade de ser um dos comunicadores neste evento. A minha pesquisa sobre o Homem de Yingpan realmente foi cercada de produções com argumentações bem similares à expressa por Victor H. Mair, com a maioria apresentando um fator em comum com o que o senhor apontou em sua questão: elas não demonstravam uma contextualização muito razoável para as argumentações elaboradas. Um fator que acredito que contribuiu muito para isso é a própria escassez de materiais que lidem com essa figura. Esse ano, felizmente, uma produção sobre o Homem de Yingpan foi publicada que lida com alguns desses fatores mais controversos, intitulada "Revealing lost secrets about Yingpan Man and the Silk Road" de Wang Tingting. Esse artigo foi uma produção interdisciplinar sensacional, que deixo aqui como recomendação.
      Quanto à questão em si, acredito que a múmia evidencia, no mínimo, contatos culturais muito fortes na região de Xinjiang vindo de duas esferas: o contexto cultural da Ásia Central, talvez bem exemplificada pelo Império Kushan, e do próprio Império Chinês. Sobre a questão da etnia da múmia, o artigo que citei traz algo inédito sobre uma análise antropológica feita dessa figura. O corpo do Homem de Yingpan apresentaria características que se assemelhavam tanto à de populações mongóis quanto europeias, e a sua estrutura facial teria características mais próximas às populações da região generalizada da Eurásia Ocidental. Apesar dessas observações não serem muito específicas, outro fator que abordei ligeiramente em meu texto acaba solidificando a perspectiva em que me assentarei. Análises feitas na múmia atestam que, em pelo menos seus últimos três ou quatro anos de vida, o Homem de Yingpan não tinha se deslocado além dos territórios da região de Xinjiang. Isso descarta a possibilidade dessa figura ser um viajante ou mercador distante, e, portanto, aumenta a possibilidade de ser um habitante local.
      Ass. Cristian de Silveira

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    2. Parte 2.
      Esses fatores, somados com a semelhança da túnica da múmia com as vestimentas dos Kushan, e as influências helenísticas na região da Ásia Central estarem ligadas aos territórios onde se estabeleceu o Império Kushan, me levam a supor que essa figura estava ligada direta ou indiretamente a esse grupo. Um fator que vale ser ressaltado também é que o Império Kushan chegou a controlar a região de Xinjiang por um curto período de tempo no fim do primeiro século E.C., antes do território ser novamente ocupado pelo Império Chinês. Dessa forma, a ligação entre as características presentes na sepultura do Homem de Yingpan, de influências culturais dos Kushan e dos Chineses, alguns séculos depois de conflitos diretos entre os dois grupos, se estabelece para mim como uma contextualização provável de como essas influências puderam se conectar. Inúmeros grupos culturais, como os povos iranianos sedentários e nomádicos que se incluíam nessa realidade da Ásia Central e das Estepes Euroasiáticas, os próprios povos nativos à região de Xinjiang, e os povos chineses se apresentam, dessa forma, como grupos presentes nessa realidade onde o Homem de Yingpan estava inserido. Sendo a realidade da região de Xinjiang extremamente complexa no contexto étnico, concluo reforçando que a argumentação do Homem de Yingpan exemplificar uma figura caucasiana, na minha perspectiva, somente serviria para restringir uma análise aprofundada da múmia e do contexto onde ela se insere.
      Ass. Cristian de Silveira

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  2. Vittoria Sampaio Neto Belizário6 de outubro de 2022 às 00:51

    Existe alguma possibilidade de teste de DNA para traçar as origens étnicas do Homem de Yingpan?

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    1. Obrigado pelo comentário Vittoria! Acredito que exista essa possibilidade, porém dentre todos os materiais os quais eu analisei durante a minha pesquisa, nenhum forneceu dados os quais se encaixassem com uma análise comparativa da genética do Homem de Yingpan com a de outras múmias ou grupos étnicos de sua época. Os testes publicados feitos com essa múmia com os quais eu tive contato se limitam a datações de carbono e análises da condição da arcada dentária e dos ossos do Homem de Yingpan. Espero que em um futuro próximo testes que se assemelhem a sua questão sejam feitos e disponibilizados, porém acredito que até o momento nada desse feitio tenha sido produzido. Ass. Cristian de Silveira

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    2. Vittoria Sampaio Neto Belizário6 de outubro de 2022 às 19:21

      Muito obrigado professor :)

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