A INDÚSTRIA DE MICROELETRÔNICA COMO PARADIGMA DO DESENVOLVIMENTO TECNOLÓGICO DA COREIA DO SUL por Alexandre Black de Albuquerque

 

Introdução

É notório que a Coreia do Sul conseguiu, nos últimos 70 anos, passar de uma nação rural, tecnologicamente atrasada e com baixa renda per capita, para se tornar uma das economias mais dinâmicas do mundo, produtora, e exportadora, de bens de alto valor agregado e com grande conteúdo tecnológico, sobretudo semicondutores, eletrônicos em geral e computadores, mas também carros, navios e maquinário industrial. Dois dos principais motores do desenvolvimento coreano foram o investimento em educação, que teve início logo a pós a independência e virou uma quase obsessão nacional, e o investimento em pesquisa e desenvolvimento – P&D que, no longo prazo, permitiu a graduação tecnológica que transformou o ambiente econômico e social do país. É certo que muitos outros fatores contribuíram para esse desenvolvimento, como a reforma agrária, a estruturação de um Estado desenvolvimentista que utilizou de medidas como protecionismo econômico, criação de estatais, controle do financiamento, imposição de regras de competitividade e metas de exportações ao setor privado e a formação dos conglomerados industriais – Chaebols. Neste texto nos ateremos a questão tecnológica, tão em voga pelo crescimento da chamada indústria 4.0 (internet das coisas, computação nas nuvens, etc.) e tecnologias como o padrão 5G de telefonia móvel e transmissão de dados, áreas em que a Coreia do Sul está bastante desenvolvida, inclusive como fornecedora de semicondutores necessários ao desenvolvimento e produção dos equipamentos capazes de operar o padrão 5G.

 

Segundo Narula (1993), há cinco estágios de desenvolvimento – ou Dynamic Economic Development Model –, sendo eles, de forma simplificada, os seguintes:

 

Estágio 1 – Países com economia baseada em bens primários e baixa taxa de investimento. O padrão educacional, em geral, é bastante deficitário. Comprometendo o processo de acumulação. Demanda fraca e pouco exigente. Nesse cenário a atuação estatal é vital para desencadear o desenvolvimento nacional.

Estágio 2 – Prevalece a ótica da substituição de importações e uma moderada orientação exportadora. Os monopólios e oligopólios ganham preponderância. Tem início a graduação tecnológica. Atuação estatal permanece importante.

Estágio 3 – Áreas tecnológicas assumem a liderança do processo de acumulação. A atuação estatal muda de orientação: mais gerenciamento e menos execução.

Estágio 4 – O país torna-se grande investidor em atividades de pesquisa e desenvolvimento – P&D localmente desenvolvidas. As empresas nacionais, estatais e privadas, tornam-se investidoras internacionais.

Estágio 5 – Declínio do crescimento econômico com níveis elevados de renda per capita. Tendência a formar blocos econômicos com outros países.

 

Nesse sistema a graduação tecnológica e o consequente aumento da intensidade do capital assumem papel preponderante no desenvolvimento de um país. Sendo a Coreia do Sul uma das nações que se encaixam na teoria de Narula com mais exatidão, e não por acaso, pois foi ao estudar, entre outros, esse pequeno país asiático, que esse autor desenvolveu a teoria do Dynamic Economic Development Model. Segundo Guimarães (2010, p. 47) a Coreia do Sul:  

 

“[...] construiu um modelo econômico marcado por forte intervenção estatal. Consolidou-se uma relação muito próxima entre o Estado e os grupos empresariais, em que o primeiro, por meio de incentivos e sanções, procurou moldar uma estrutura industrial robusta e competitiva. O controle do setor financeiro deu ao Estado forte capacidade de promover os setores considerados estratégicos. Uma alta capacidade de monitoramento, propiciada por uma burocracia capacitada, garantiu que os incentivos fossem acompanhados de aumento de produtividade, elevação na competitividade e capacidade de exportação. Durante as décadas de 1960 a 1980, a implantação desse modelo levou a um rápido e bem-sucedido processo de industrialização”.

 

Não houve descuido também com a questão educacional, sendo que a proporção dos gastos governamentais com educação passou de 2,5% para 23% entre 1951 e 1995 (MASSIERO, 2002). Empresas e famílias também participam desse esforço educacional que se tornou uma obsessão nacional. Desta forma, a população em idade universitária fazendo graduação pulou de 11% em 1970 para mais de 80% atualmente. O investimento em educação proporcionou a formação de engenheiros e cientistas necessários a Pesquisa Científica e ao desenvolvimento tecnológico. O número de cientistas e engenheiros multiplicou-se por 5 entre 1980 e 1990, sendo o maior crescimento do mundo nesse período (idem).  Inicialmente a Coreia do Sul adotou a tática da transferência de tecnologia e da imitação, posteriormente começou a desenvolver elementos próprios, sobretudo componentes, como autopeças e componentes de informática. É claro que no primeiro momento havia certa defasagem tecnológica em relação aos países centrais, mas posteriormente, sobretudo a partir da década de 1990 do século XX, o país começou a tornar-se proeminente em tecnologias de fronteira. Para tanto, contribuiu décadas de parcerias tecnológicas com países mais desenvolvidos como os EUA e Japão.

 

A Função do Estado no Desenvolvimento Sul Coreano

Ao contrário do que prega os teóricos do liberalismo, para que ocorresse o desenvolvimento econômico, o Estado da Coreia do Sul teve uma postura ativa, seja garantindo o financiamento do setor privado, investindo em P&D, etc., seja através de empresas estatais, como a POSCO – Companhia de Aço e Ferro Pohang. Em outras palavras, na Coreia foi estabelecido um estado desenvolvimentista que visava atenuar e/ou superar as deficiências do mercado, na tentativa de fomentar a industrialização e a graduação tecnológica. No entanto, nem todos os países que contaram com a intervenção do Estado na economia, conseguiram engendrar um processo de desenvolvimento econômico e social como o que ocorreu na Coreia do Sul e em outros países do sudeste asiático, como Taiwan:

 

“Para cumprir esses papéis, são necessárias duas condições estruturais: primeiro, uma burocracia econômica capacitada, de seleção meritocrática e que siga carreiras que ofereçam retornos de longo prazo comparáveis com àquelas oferecidas pelo setor privado. Esta simples condição tem se provado essencial para o rápido crescimento econômico, não apenas do extremo Oriente, mas também em outros países em desenvolvimento” (EVANS, p. 10, 2004) 

 

Desta forma, a Coreia do Sul, sobretudo sob o governo do general Park, desenvolveu um Estado relativamente tecnocrático, com objetivos claros em relação ao desenvolvimento, que implementou políticas industriais realistas, estabelecendo um arcabouço institucional capaz de dar suporte ao crescimento econômico. Fundamentalmente a Coreia estabeleceu uma trajetória que tinha como objetivo o desenvolvimento através de uma mudança qualitativa de sua participação na divisão internacional do trabalho. A meta era se tornar exportadora, no longo prazo, de bens de alto valor agregado que possibilitassem a criação de empregos qualificados, capazes de garantir um continuado aumento da renda do salário e, também, aumento dos lucros, possibilitando uma contínua melhora do nível de vida da maior parte da população. Como os países desenvolvidos detém o quase monopólio da produção dos bens de alto valor agregado e alto conteúdo tecnológico, vê-se logo que não é tarefa trivial modificar de forma significativa as relações da divisão internacional do trabalho e suas grandes assimetrias, sobretudo para um país pequeno territorialmente e com uma população não muito grande como a Coreia do Sul. A transformação produtiva de país foi possível por uma série de fatores, o que inclui a ajuda dos EUA no contexto da Guerra Fria, mas também porque o processo político interno possibilitou a criação de políticas de desenvolvimento relativamente coerentes com o estágio econômico em que se encontrava a Coreia no momento da implantação dessas políticas. A partir da década de 1970, o Estado, e muitas empresas privadas, se voltaram para a Microeletrônica, ramo de alto conteúdo tecnológico e onde, atualmente, a Coreia do Sul é um dos expoentes mundiais.

 

A Indústria de Microeletrônica na Coreia do Sul

A indústria da microeletrônica começa a se consolidar em âmbito mundial na década de 1960, é neste momento que Governo e empresas coreanas e multinacionais começam a articular a instalação e desenvolvimento deste setor no país asiático. Inicialmente as expectativas eram relativamente baixas, dado o então atraso tecnológico coreano. Segundo Ibrahim (2019, p.87):

 

“O arranjo produtivo da indústria de microeletrônica pode ser dividido em cinco etapas da cadeia produtiva: concepção do produto, projeto, fabricação, encapsulamento e teste, e serviço ao cliente. De forma prática, a primeira etapa vem realizar a concepção de requisitos e desempenho do dispositivo determinando às funções em hardware e software, verificando as necessidades e funções do dispositivo. No segundo estágio, as Design Houses realizam o projeto e arquitetura em diálogo com a fase seguinte da fabricação, testes e validações. O processo de fabricação materializa o projeto desenvolvido anteriormente e repassa à fase de encapsulamento que monta os dispositivos de acordo com o projeto realizado. Por fim a etapa de serviços ao cliente presta assessoria técnica e acompanhamento do funcionamento dos dispositivos”.

 

De fato, o “arranjo produtivo” sul coreano era incapaz de reproduzir todas essas etapas, inicialmente apenas o encapsulamento era realizado no país, e era dominado por multinacionais dos países centrais, sem repasse da tecnologia e com pouca formação de mão de obra qualificada, sobretudo na área de concepção do produto, limitando o desenvolvimento dessa indústria em território coreano, o que levou o governo a estabelecer a Lei de Promoção de Eletrônicos em 1969 (idem, p. 91). Centrado nos Chaebols (conglomerados) e com largo apoio estatal, o país começou a conduzir uma política industrial para o setor de microeletrônica visando internalizar a produção e tornar-se exportador de componentes e produtos completos, mesmo que no longo prazo, dada as barreiras de entrada nessa indústria de alta capacitação tecnológicas. A criação de vários institutos voltados ao desenvolvimento dessa indústria como o Korean Institute of Electronics and Technology – KIET, o Korean Electronics and Telecommunications Research Institute – KETRI e o Korean Advanced Institute of Science and Technology – KAIST, foram de grande relevância para formar mão de obra qualificada. Vale salientar que alguns empreendimentos voltados a microeletrônica não foram bem-sucedidos, sofrendo de falta de capacidade tecnológica e tendo que sobreviver no mercado interno coreano que, até o final da década de 1970, era bastante limitado, o que comprimia os lucros, dificultava os ganhos de economia de escala e, portanto, criava um certo desinteresse por parte da indústria local. Desta forma, o Estado fornecer diversos tipos de subsídios foi de grande importância para a primeira fase de desenvolvimento desse setor.  

 

O sistema financeiro dominado pelo Estado havia colocado o principal Chaebols em uma “dieta de esteroide” desde meados da década de 1960, mas, em troca de seu apoio, exigiu da empresa um desempenho competitivo crescente. No decorrer da década de 1970, o estímulo do “fisiculturismo empresarial” do Estado criou um caminho natural na direção das tecnologias da informação por meio do condicionamento do apoio a disposição das empresas em explorar novos setores, sendo o da eletrônica um dos mais recomendados. (EVANS, 2004, p. 209).

 

Mesmo que o caminho rumo à microeletrônica não tenha sido tão natural, como supõe Evans, é evidente que a atuação do Estado foi decisiva para alavancar a indústria local, e não apenas no ramo aqui analisado. Evans (idem) ainda destaca o fato de que o mercado interno coreano ficou praticamente restrito as empresas do país, principalmente os Chaebols, enquanto as empresas estrangeiras se concentravam nas exportações. Quanto maior era o grau de desenvolvimento da indústria coreana mais as multinacionais compravam componentes de empresas locais, o que, além de aumentar a agregação de valor no país, também contribuía para impor a essas empresas padrões de qualidade e eficiência internacionais, favorecendo a curva de aprendizagem e as tornando mais capacitadas a concorrerem no mercado externo, não apenas como produtoras de componentes, mas também como produtoras de bens finais, o que aconteceria sobretudo na década de 1980. De fato, a penúltima década do século passado observou “O crescimento vertiginoso da produção de computadores e semicondutores na Coreia” (EVANS, 2004, p. 228), e se torna o principal setor exportador. Evans (idem) também atenta para as inúmeras alianças internacionais que as empresas coreanas fizeram, sobretudo a partir de 1980, como acordos tecnológicos e joint ventures, além de começarem a abrir subsidiárias em outros países, amplificando o processo de internacionalização da indústria de microeletrônica em particular e da própria economia coreana em geral.

 

Analisando as estratégias de alguns dos principais cheabols ao longo da década de 1980 Ibrahim (2019) observa uma maior interação entre eles e institutos governamentais de tecnologia, amplificando os investimentos em microeletrônica. A Samsung montou uma força tarefa em 1982 tento em vista desenvolver e produzir memória 64k DRAM, no ano seguinte abriu uma planta de P&D na Califórnia, contratando engenheiros com experiência em empresas norte americanas, tanto para trabalhar na nova planta nos EUA como para trabalhar na Coreia (Idem). A meta era não apenas desenvolver semicondutores, mas também capacitar coreanos, de forma a atingir independência tecnológica. Mas não era apenas a Samsung que estava desenvolvendo produtos no setor de microeletrônica, a Hyundai também se tornou produtora de memória 64 DRAM, enquanto a Daewoo e LG focaram em outros nichos de mercado para memórias;

 

“Os chaebols foram capazes de entrar na produção de microeletrônica de memória DRAM,[...], devido a sua capacidade de negociar acordos de joint venture com as multinacionais estrangeiras e pela compra de licenças de tecnologia de empresas estrangeiras, superando os enormes custos de entrada no setor de capital intensivo. Dessa forma, além de permitir a entrada de IDE passíveis de apropriação tecnológica, o governo aumentara os incentivos fiscais e financeiros às atividades de P&D privadas, afastando-se gradualmente da atividade. Devido à expansão das atividades independentes de P&D em semicondutores as instalações de pesquisa de semicondutores da KIET foram vendidas para a LG em 1985. Nesse momento, novamente a parceria entre o governo e os chaebols garantiria que o conglomerado se concentrasse na dinâmica inovativa industrial, permitindo o governo diminuir os gastos públicos em P&D e consequentemente a sua importância no sistema nacional de inovação”. (Idem, p. 95).

 

Essa capacidade de negociar acordos de joint venture com empresas estrangeiras que dominavam a tecnologia aliado ao apoio estatal, permitiu o início do desenvolvimento da indústria de semicondutores coreana. A relativa diminuição da participação do Estado ao longo da década de 1980, em consequência do amadurecimento tecnológico das empresas locais, aumentou a concorrência entre as firmas coreanas tanto no mercado interno como no externo, amplificando o grau de comprometimento dessas empresas com P&D. A recompensa por esses investimentos seria aumentar a participação nos mercados internos e externos elevando o faturamento e o lucro ou, mesmo, permitindo a continuidade das atividades dessas empresas nesse ramo industrial em particular. Desta forma a Coreia do Sul passou por uma profunda transformação de sua base produtiva nas últimas décadas, passando de um país pobre e agrícola para se tornar uma nação industrial com uma ampla base tecnológica, como demonstra a mudança de perfil das exportações do país. Em 1962 foram exportados não mais que 49,2 milhões de dólares sendo que os bens primários representaram 37,8 milhões de dólares ou 77% do total, para efeito de comparação, nesse mesmo ano o Brasil exportou 1,29 bilhão de dólares com um perfil das exportações também fortemente baseada em bens primários. Ou seja, além de ter exportado pouco a Coreia exportou mercadorias de baixa complexidade e de baixo valor agregado, o que dificultava a dinamização da economia e a melhora da qualidade de vida da maior parte da população. Em 2019 as exportações chegaram a 540 bilhões de dólares (o Brasil, no mesmo ano, exportou 217 bilhões) e tinham mudado profundamente de perfil, sendo que apenas as exportações de circuitos integrados foram de 87,5 bilhões. Eletrônica (engloba circuitos integrados) foram de 159 bilhões. As exportações totais de bens de médio e alto valor agregado (eletrônica, maquinaria e veículos) foram de 330 bilhões, confirmando uma notável mudança de posição na divisão internacional do trabalho no decurso de 60 anos.

 

Conclusão

Desde que surgiu como estado independente em 1948 a Coreia do Sul buscou a rota do desenvolvimento econômico e social. Nesses 70 anos deixou de ser uma economia agrícola para se tornar um dos mais dinâmicos “tigres asiáticos”. Para tanto realizou reformas estruturais, como a agrária, implementou um sistema educacional de elevado nível de qualidade, desenvolveu políticas industriais eficientes e alocou grandes somas e P&D, tanto pelo setor público como pelo privado, de fato a interação entre a esfera estatal e empresas privadas foi um dos motores que alavancaram o desenvolvimento coreano. Desta forma, esse pequeno país asiático (do tamanho do estado de Pernambuco e com uma população cinco vezes maior, cerca de 50 milhões de habitantes) se tornou uma das poucas nações de industrialização retardatária que conseguiu desenvolver uma indústria de alta tecnologia competindo internacionalmente com países com bem mais tradição em áreas como a microeletrônica, como os EUA e Japão, sendo, inclusive, líder em áreas estratégicas como na produção de memória DRAM.

 

Referências

Alexandre Black de Albuquerque é Mestre em história pela Universidade Federal de Pernambuco.  

 

EVANS, Peter. Autonomia e Parceria: Estados e transformação industrial. UFRJ, 1º edição, 2004.

 

GUIMARÃES, Alexandre Queiroz. Estado e economia na Coreia do Sul: do Estado desenvolvimentista à crise asiática e à recuperação posterior. In: Revista de Economia Política. São Paulo, v. 30, no. 1, mar 2010. p. 45-62. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-31572010000100003&script=sci_arttext> acesso em 16/01/2013.

 

IBRAHIMI, Hermano Caixeta. Rev. A Política Industrial na Coreia Do Sul e no Brasil Durante o Paradigma Tecnológico da Microeletrônica. Cadernos de Campo, Araraquara, n. 27, p. 83-114. jul./dez. 2019.

 

MASSIERO, Gilmar. A Economia Coreana: características estruturais. 2002.

 

NARULA, Rajneesh. Technology, International Business and Porter's "Diamond": Synthesizing a Dynamic Competitive Development Model. MIR: Management International Review Vol. 33, Extensions of the Porter Diamond Framework, 1993, p. 85-107. Published By: Springer.

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