QUESTÕES SOBRE A IMAGEM DA IGREJA DE SANTA SOPHIA NO MANUSCRITO TCHECO ADD. 24189 (c. 1410) DE VIAGENS DE JEAN DE MANDEVILLE por Jorge Luiz Voloski e Giovanni Bruno Alves


Introdução

No começo do livro Viagens de Jean de Mandeville, o autor se apresenta como cavaleiro, nascido na Inglaterra, na cidade de St. Albans, que viajou para o além-mar no ano de 1322. Enquanto no final do texto, afirma que regressou à Cristandade a contragosto “(...) por causa de uma artrite gotosa. Sendo obrigado a descansar, recordei o passado, compilei essas coisas e as coloquei por escrito, do modo como pude lembrar-me, no ano da graça de 1356, 34 anos depois de deixar nossas terras” (MANDEVILLE, 2007, p. 256).

 

As informações presentes na obra a respeito de sua autoria foram tidas por séculos como verídicas, contudo, em consequência da grande importância oferecida aos autores pelos pesquisadores do século XIX, ocorreram problemas na percepção e recepção do livro, levando ao descrédito da existência de Jean de Mandeville. E. B. Nicholson e Sir Henry Yule foram os primeiros a possuírem referido posicionamento. Segundo Susani Silveira Lemos França, esses se empenharam em desmentir a natureza testemunhal do relato haja vista a grande dependência de outros textos, fato observado mediante o mapeamento das fontes utilizadas para a escrita de Viagens de Jean de Mandeville. Porém:

 

“Em se tratando do trabalho de um autor medieval, contudo, tais pressupostos se mostram obsoletos. Mandeville é, sem dúvida, um compilador -e cultivador-, mas sua miscelânea de apropriações pode ser vista se levarmos em conta o mundo em que escreveu, mais como mérito do que como infração” (FRANÇA, 2007, p. 17).

 

Situação semelhante sucede com os manuscritos de Viagens de Jean de Mandeville. Assim, Iain Higgins defende a não necessidade da autoria do livro, o qual constitui produto de mais de uma pessoa, sobretudo no que toca aos intermediários, ou seja, aos copistas, quem atuava, muitas vezes, na posição de autor, realizando mudanças e raramente as assinalando (HIGGINS, 1997, p. 17-18).

 

Nesta direção, objetivamos no presente escrito analisar as mudanças realizadas no livro Viagens de Jean de Mandeville mediante o manuscrito tcheco Add. 24189, o qual foi redigido em 1410. Sobretudo, observaremos a imagem de Santa Sophia, cujas características arquitetônicas mais se assemelha à arquitetura gótica.

 

O livro Viagens de Jean de Mandeville e o manuscrito Add. 24189

A obra Viagens de Jean de Mandeville apresenta uma estrutura diferente de outros escritos de viagens redigidos durante os séculos XIII, XIV e XV em razão de seu conteúdo possibilitar a separação em duas partes. Malcolm Letts, expõe uma síntese de ambas ao colocar que:

 

“A parte 1 pretende ser um guia da Terra Santa, que todos os homens devem amar e exaltar, e que todos têm como dever reconquistar. Todas as rotas possíveis são descritas, incluindo uma que passa pelo Turquestão. As menções de santos e relíquias servem para introduzir um número de histórias bíblicas e não-bíblicas, e após a descrição do Monte Sinai e do Egito, a segunda parte do livro leva o leitor ao Extremo Oriente, em que a imaginação do autor assume o protagonismo total” (LETTS, 1949, p. 41, tradução nossa).

 

Assim, mesclando a descrição do Oriente próximo e longínquo, Jean de Mandeville objetiva apresentar uma descrição de todo o mundo conhecido no período, pois, em suas palavras, “(...) a todo mundo agrada ouvir falar de coisas novas” (MANDEVILLE, 2007, p. 255). Tal busca, junto às diversas descrições maravilhosas, colabora na compreensão do deleite causado nos leitores e, consequentemente, no entendimento da ampla propagação da obra, sendo redigidos somente durante o século XV mais de 250 manuscritos.

 

Perdido o primeiro manuscrito do livro Viagens de Jean de Mandeville, pouca certeza temos a respeito da exata data de sua escrita. Entre as divergências dos pesquisadores, os anos entre 1351 e 1371 recebem especial ênfase, uma vez que, como esclarece Michael C. Seymour, 1351 foi finalizado o texto de Jean Le Long, o qual Jean de Mandeville possui grande dependência na segunda parte da obra, enquanto 1371constitui a data do manuscrito mais antigo (SEYMOUR, 1994).

 

Escrito em Paris em 1371 por Raoulet d’Orléans, para Charles V, o primeiro manuscrito recebeu a denominação de Fons. fr. nouv. ac. 4515, sob o qual foram elaboradas 26 versões subsequentes, que agrupados recebem o nome de “Versão Continental”, todos datadas dos séculos XIV e XV. Porém, como destaca Josephine W. Bennett, mesmo mais antiga, trata-se de uma cópia pobre da original, isso porque há duas adições: a primeira na narração do “Vale Perigoso”, enquanto a segunda se encontra no momento aonde o autor defende a circunferência da terra (BENNETT, 1953, p. 139).

 

Paralelo aos manuscritos da “Versão Continental” surge os pertencentes à “Versão Insular”, cujo primeiro manuscrito, também baseado no original, foi perdido. Difundidos sobretudo na Inglaterra, estes, além de não possuírem as substituições da tradição Continental, se caracterizam pela adição de uma passagem sobre Jó.

 

Por fim, distinta da tradição “Continental” e “Insular” há a “Versão de Liége”. Esta possui como principal característica uma adição do herói Carolingio Holger Danske, resultado da reescrita da “Versão Continental” por Jean d’Outremeuse (BENNETT, 1953). 

 

No que toca ao manuscrito Add. 24189, objeto de estudo no presente texto, de acordo com Michael C. Seymour, provavelmente foi redigido com base em uma copia da Versão Latina Vulgar (SEYMOUR, 1994, p. 52). Esta, por sua vez, conforme esclarece Rosemary Tzanaki, teve origem na “Versão de Liége”, a qual:

 

“Constitui uma severa revisão da obra Viagens de Jean de Mandeville, com cortes acerca de um terço. Seu autor é intolerante ao extremo, condenando tudo menos o Cristianismo mais doutrinalmente sólido e rejeitando o sincretismo teológico de Jean de Mandeville” (TZANAKI, 2017, p. 15, tradução nossa).

 

Porém, à diferença de outros manuscritos ligados a “Versão de Liége”, a qual dá origem a tradução Checa, o manuscrito Add. 24189 não possui texto, somente imagens. Explica-nos Rosemary Tzanaki que:

 

“O manuscrito consiste de 28 páginas inteiramente pintadas, correspondendo aos primeiros cinco capítulos da versão Checa, (...). O artista ilustra as relíquias, tumbas, cidades e paisagens. Ele também oferece algumas cenas humanas, como três coroações de Jesus Cristo, Sete no portão do Paraíso e Sansão. A luminosidade verde subjacente é geralmente retida nas paisagens. Cores são usadas como fundo para o céu, mar e arvores, com um tom de pele humano nas figuras. Ouro é usado para decorar” (TZANAKI, 2017, p. 36, tradução nossa).

 

No tópico a seguir, das 28 imagens presentes no manuscrito, selecionamos para a análise a pertinente a igreja de Santa Sophia, cuja características mais se assemelham com uma arquitetura gótica.

 

A imagem da catedral de Santa Sophia no manuscrito Add. 24189.

No fólio 9v. do manuscrito Add. 24189 de Viagens de Jean de Mandeville nos deparamos com uma ilustração da cidade de Constantinopla (Figura 1), com especial foco ao que seria a estátua dourada do Imperador Justiniano logo a frente da Catedral de Santa Sofia. O espectador do manuscrito deve logo reparar nas características formais dessa construção: Notadamente, são percebidos pináculos, arcobotantes e contrafortes característicos da arquitetura gótica na Europa Ocidental. Um – não tão pequeno – detalhe ausente é ainda mais chocante: onde está a famosa cúpula de Santa Sofia? (Figura 2).

 

Figura 1: “Constantinopla” segundo o Mestre Mandeville. Fonte: add MS 24189 (c.1410), fol. 9v. Londres: British Library. Disponível em: https://www.bl.uk/manuscripts/Viewer.aspx?ref=add_ms_24189_fs001r. Acesso: 10 set 2022.

 

Figura 2: Santa Sofia. Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Santa_Sofia#/media/Ficheiro:Hagia_Sophia_Mars_2013.jpg . Acesso: 10 set 2022.

 

Ainda que tal divergência pareça chocante a uma primeira vista, não devemos deixá-la nos levar a conclusões precipitadas que tendem a diminuir o conhecimento do iluminador (chamado, por Mojmír Frinta de Mestre Mandeville), ou remetem à uma falha/erro do mesmo (FRINTA, 2019, p.07).

 

Antes de nos voltarmos à nossa fonte, cabe uma breve introdução acerca de seu referencial: a Catedral de Santa Sofia. A Hagia Sofia (“santa sabedoria” foi construída por volta dos anos 532 – 537 d.C. em Constantinopla, pelo imperador Justiniano (482 d. C. – 565 d.C.). Logo que foi completa, sua cúpula se tornou seu maior símbolo, notado por viajantes do período como Procópio, ainda no século VI. Destruída 20 anos depois após um grave terremoto, foi prontamente reconstruída novamente sob ordem de Justiniano. Seu objetivo era claro e foi atingido com sucesso: se tornar um símbolo do poder imperial e de sua relação com o sagrado, algo que permaneceu verdade até a conquista de Constantinopla pelos Turcos no século XV (CHING, 2019, p. 280).

 

Mas e a Santa Sofia do Mestre Mandeville? Para analisarmos a sua imagem e nos voltarmos a nosso problema central precisamos compreender as funcionalidades pretendidas por ela. A imagem em questão está inserida em um manuscrito, um objeto. Portanto, sua dimensão não é apenas visual, mas, como teoriza Jérôme Baschet (2008), é também material. Classificamos ela como uma imagem-objeto e, como tal, uma combinação entre aquilo que ela mostra e aquilo que ela faz. Suas funcionalidades se fazem essenciais para a compreensão de sua aparência (BASCHET, 2008, p. 48).

 

Além disso, interpretamos a imagem-objeto de Constantinopla como parte de uma narrativa maior, que compreende também todo o objeto manuscrito a que ela se insere. Essa narrativa é completamente imagética e não acompanha o material escrito ao qual ela se baseia: as viagens de Jean de Mandeville. O que nos permite primeiras inflexões: possivelmente esse manuscrito teria sido feito para ser “lido” por um ou mais pessoas letradas, com acesso a outros manuscritos contendo a seção escrita da história. Além disso, o alto preço de tais objetos pressupõe a necessidade de recursos para sua confecção e sua posse, o que o leva às mãos da alta nobreza tcheca do início do século XV. Tudo isso se confirma pelo grande interesse da realeza no tempo de Wencesclaus IV (1361-1419) na comitância de manuscritos iluminados e objetos de arte de forma a se aproximar da arte gótica francesa do mesmo período (ROYT, 2003, p. 93-94).

 

Com essas informações, temos uma possível noção do público do manuscrito: uma nobreza próxima à realeza, culta, letrada e com acesso à informação e à viagens de peregrinação ou lazer. Ou seja, pessoas que possivelmente já tiveram acesso ou à Santa Sofia original, ou às suas representações que percorriam a região da Bohemia.

 

E como se explica a divergência formal gritante entre o referencial e a imagem? Não pretendemos, por meio dessa comunicação, oferecer uma resposta final ou clara, mas apontar possíveis respostas.

 

Voltamos, primeiramente, à ideia de narrativa. O Mestre Mandeville elaborou, através do conjunto de 27 imagens inseridas no manuscrito em questão, uma narrativa do “outro”, nos termos de François Hartog (1999). Ao se narrar o “outro”, ou seja, o diferente, se diz mais sobre o “eu” do que necessariamente sobre o seu referente. Um dos motivos para isso é base para nossa primeira hipótese: para tornar as imagens inteligíveis, o iluminador utilizou de um dos recursos elencados por Hartog: a tradução. Ela basicamente consiste na utilização de signos comuns ao público da narrativa para contar sobre algo alheio a sua realidade. Nesse caso, uma catedral nos moldes “góticos” seria mais rapidamente vista como uma catedral pelo espectador praguense do que uma catedral “fidedigna” às características de Santa Sofia (HARTOG, 1999, p. 48-49).

 

Entretanto, mesmo que essa seja uma das explicações plausíveis, ainda há outras questões. Ao pensarmos em um público que possivelmente reconheceria as feições da Santa Sofia original, fica a dúvida: por que ainda seria necessário recorrer à tradução?

 

Peter Burke (2001) pode nos oferecer uma outra hipótese plausível, não necessariamente excludente à de Hartog. Em seus termos, podemos pensar tal imagem como um “estereótipo”, ou seja, uma imagem que segue inteiramente a visão do “eu” para retratar um “outro”, não como esse “outro” é, mas como ele o é para o “eu”. Ainda mais importante, o estereótipo não tem como função necessariamente a de tornar o “outro” compreendido pelo “eu”. Na verdade, se trata de uma forma de assimilação através da analogia, assim, se ignora ou se nega a distância cultural e se retrata o outro como um reflexo do “eu”, o modelo a ser seguido (seja moral, estético, etc.). É a “domesticação” do outro (BURKE, 2001, p. 123).

 

Referências

Jorge Luiz Voloski é formado em História pela Universidade Estadual de Maringá. Mestre em História pelo Programa de Pós-Graduação em História, da Universidade Estadual de Maringá. Atualmente cursa o doutorado no Programa de Pós-Graduação em História na Universidade Estadual de Maringá, sendo membro do Laboratório de Estudos Medievais [LEM]

 

Giovanni Bruno Alves possui graduação em História pela Universidade Estadual de Maringá. Mestre em História pelo Programa de Pós-Graduação em História, da Universidade Estadual de Maringá. Atualmente cursa o doutorado no Programa de Pós-Graduação em História na Universidade Estadual de Maringá, sendo membro do Laboratório de Estudos Medievais [LEM]

 

BASCHET, Jérôme. L’iconographie Médiévale. Paris: Folio Histoire, 2008.

 

BENNETT, Josephine W. The rediscovery of Sir John Mandeville. New York: The Modern Language Association of America, 1953.

 

BURKE, Peter. Stereotypes of Others. In: Eyewitnessing: The Uses of Images as Historical Evidence. London: Reaktion Books Ltd, 2001.

 

CHING, Francis; JARZOMBEK, Mark; PRAKASH, Vikramaditya. História Global da Arquitetura. Porto Alegre: Bookman, 2019.

 

FRINTA, Mojmír. Searching for the sources of inspiration of the master of the travels of John Mandeville. In: Wiener jahrbuch fûr Kunstgeschichte. Vol. 57, n. 01, 2019. Disponível em: doi.org/10.7767/wjk.2008.57.1.7. Acesso: 20 set 2022.

 

FRANÇA, Susani Silveira Lemos. Introdução. In: Viagens de Jean de Mandeville. Bauru,SP: EDUSC, 2017, p. 13-29.

 

HARTOG, François. O Espelho de Heródoto. Ensaio sobre a Representação do Outro. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999.

 

HIGGINS, Iain Macleod. Writing East: the ‘travels’ of Sir John Mandeville. Philadelphia, Pennsylvania: University of Pennsylvania Press, 1997.

 

LETTS, Malcolm. Sir John Mandeville. The man and his book. London: The Batchworth Press, 1949.

 

ROYT, Jan. Medieval Painting in Bohemia. Prague: The Karolinum Press, 2003.

 

SEYMOUR, Michael C. Sir John Mandeville. In: SEYMOUR, Michael C.; FOWLER, David C.; [et. al.] (Org.). Author of the Middle Ages. 1-4. New York: Routledge Taylor & Francis Group, 1994, p. 6-64.

 

TZANAKI, Rosemary. Mandeville’s Medieval Audiences: a study on the Reception of the Book of Sir John Mandeville (1372-1550). New York: Routledge, 2017.

 

VIAGENS DE Jean de Mandeville. Tradução: Susani Silveira Lemos França. Bauru, SP: EDUSC, 2007. 

2 comentários:

  1. Saudações Giovanni e Jorge, fiquei fascinado nas interpretações a respeito da representação da catedral de Santa Sofia, é muito interessante a forma como as imagens que supostamente são uma representação do "outro" acabam nos informando mais a respeito de quem as produz do que sobre o outro em si .
    A respeito do manuscrito, fiquei pensando em outros casos além da catedral que poderiam se encaixar nessa perspectiva de representação não tão fidedigna, há outros exemplos tão notórios e interessantes assim ?

    Atenciosamente, Gabryel Garcia Lima.

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    1. Olá Gabryel Garcia Lima. Agradeço a leitura do texto e a possibilidade de podermos debater referido tema. De fato, é fascinante como as representações do "Outro" nos diz mais a respeito do "Eu", ou "Nós", ao invés de somente aquilo que se pretende "traduzir". Isso ocorre, como demonstrado no artigo, nas imagens, mas também na escrita, uma vez que os viajantes, a exemplo do próprio Jean de Mandeville, ao narrar o distante apresenta mais sua sociedade e menos aquela testemunhada.
      Sobre seu questionamento, há outros momentos no manuscrito de uma, em suas palavras, "representação não tão fidedigna". Casas, por exemplo, pouco semelhantes com as de Constantinopla e assim sucessivamente. Recomendo que você de uma olhada no manuscrito, o qual esta disponível na "The British Library". Olhe, sobretudo o "f.10r" e o "f.11r". Anexo também o site do manuscrito:
      https://www.bl.uk/manuscripts/Viewer.aspx?ref=add_ms_24189_fs001r

      Agradeço,
      att, Jorge Luiz Voloski

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