A OBRA XUNZI COMO FONTE DE PESQUISA DA HISTÓRIA DA FILOSOFIA CHINESA ANTIGA por Matheus Oliva da Costa


A OBRA XUNZI COMO FONTE DE PESQUISA DA HISTÓRIA DA FILOSOFIA CHINESA ANTIGA por Matheus Oliva da Costa

 

 

Introdução

Um dos motivos que comecei a estudar e pesquisar a obra Xunzi, foram os debates levantados com outros autores pelo o seu autor homônimo, o filósofo Xun (Xunzi 310-211 AEC). Ele se coloca como defensor da Escola dos Eruditos (“confucionismo”), mas teve inspirações e ensinou a membros da Escola das Leis, usava selecionadamente termos dos daoístas Laozi e Zhuangzi, utilizava algumas estruturas teóricas dos moístas enquanto criticava veementemente o filósofo Mo (Mozi), entre muitas outras interações com textos e ideias das “cem escolas” de pensamento. Por isso mesmo, nesse breve texto defendo que o Xunzi é uma relevante fonte de registro dos autores, ideias e debates da filosofia antiga chinesa.

 

Se o que eu defendo fizer sentido, a leitura do Xunzi constitui por si só uma fonte de informações sobre o campo filosófico, especificamente, e da história das ideias da China antiga, em geral. De forma complementar, o estudo do Xunzi nos convida a conhecer novos autores, ler outras obras e entender como o que ele diz se relaciona com o seu tempo histórico. Mais do que isso, entender os pontos defendidos por Xun implica conhecer quem, o que e como ele está criticando, para depois ter maior clareza sobre suas posições e argumentos.

 

Já foi publicado recentemente um texto sobre as críticas do filósofo Xun no seu capítulo 22 (Zheng Ming, Nomeação Correta) contra o que ele atacou como sendo falácias de outros filósofos do seu tempo (Costa, 2021b). Este é um exemplo entre muitos de críticas a teses de outros pensadores, contudo, esse capítulo 22 é um exemplo de críticas indiretas, sem citar nomes, que Xun fez aos seus oponentes intelectuais. Ele também elaborou julgamentos específicos contra algum filósofo: os capítulos 18 e 20 são exemplos desse último caso, em que ele critica ideias do Mozi e do Songzi, respectivamente. Dessa vez busco mostrar alguns trechos do Xunzi em que ele faz críticas explícitas a vários outros filósofos – trechos de tradução que serão mostrados abaixo, de forma direta ou sintetizada. A seguir, analisarei esses trechos do Xunzi buscando responder à pergunta: de que forma a sua obra nos possibilita a conhecer mais as ideias da antiguidade chinesa?

 

Capítulo Livrar-se das obsessões, trecho 5

O capítulo 21 do Xunzi, Livrar-se das obsessões (Jie Bi), provavelmente  foi escrito no início da carreira do filósofo Xun, quando ele foi estudante na Academia Jixia (Knoblock, 1982-1983, p. 35). Esse foi um espaço de trocas e disputas intelectuais na China Antiga durante o período dos Estados Combatentes (aproximadamente 403-221 AEC), tempos de intensa instabilidade política e bélica. Dentre as estratégias que Xun usou para explicar o que ele entendia ser um grande problema epistêmico para o estabelecimento da ordem no seu tempo, as obsessões, ele articula o seguinte trecho que traduzi para atacar quem eram os filósofos (zi) obsessivos (bi) e defender quem era o modelo de filósofo livre de obsessões, Confúcio:

 

“No passado, os peregrinos renomados eram pessoas obcecadas e eram das várias escolas [de pensamento] desordenadas. Mozi [Mo Di] obcecava-se pela utilidade e não reconhecia [os refinamentos da] cultura. Songzi [Song Xing] obcecava-se pelo desejo e não reconhecia a realização [pessoal para além dos desejos naturais]. Shenzi [Shen Dao] obcecava-se pelas leis e não reconhecia as virtudes [como valor de uso político]. O Shenzi [Shen Buhai] obcecava-se pelas táticas pelo poder e não reconhecia o conhecimento [seguro e constante]. Huizi [Hui Shi] obcecava-se pelas proposições e não reconhecia a realidade [concreta para além da linguagem]. Zhuangzi [Zhuang Zhou] obcecava-se pela natureza e não reconhecia os humanos [em sua singularidade]. Então, referir-se ao Caminho por meio da utilidade é limitá-lo ao ‘benefício’. Referir-se ao Caminho por meio do desejo é limitá-lo a ‘satisfação’. Referir-se ao Caminho por meio das leis é limitá-lo ao ‘controle’. Referir-se ao Caminho por meio das táticas pelo poder é limitá-lo a ‘conveniência’. Referir-se ao Caminho por meio das proposições é limitá-lo a ‘discussão’. Referir-se ao Caminho por meio da natureza é limitá-lo a ‘conformidade’. Estas [posições] contam como ferramentas [úteis], mas todas são apenas um aspecto do Caminho. Contudo, o Caminho tem forma constante e abarca [todas] as transformações, um aspecto é insuficiente para expressá-lo. O conhecimento distorcido das pessoas vê apenas um aspecto do Caminho e não é capaz de conhecê-lo. Então, ao pensar que isso é suficiente e elogiável, internamente desordenam-se a si mesmos, externamente confundem as pessoas; [estando] por cima, obcecam-se por baixo, [estando] por baixo, obcecam-se por cima: essas são as desgraças de estar na condição de ser obcecado. Confúcio [tinha as virtudes da] humanidade e da sabedoria e também não era obcecado, então estudava os diversos métodos suficientemente: considero [suas virtudes] tal como as dos Reis Antigos. O princípio da sua Escola realizou o Caminho Amplo e escolheu empregá-lo, não foi obcecada a ponto de fixar-se e estagnar-se. Assim, sua virtude está no nível do duque de Zhou, seu renome está à altura dos três Reis [Sábios da Antiguidade]. Essas são as felicidades de não ser obcecado” (Xunzi, cap. 21.5, 2006, tradução nossa).

 

Capítulo Discurso sobre o Céu, trecho 17

Escrito mais tardiamente, o capítulo 17, Discurso sobre o Céu (Tian Lun) é um escrito mais maduro e sistemático. Quando o redigiu, Xun já havia estudado, trabalhado como ministro, e provavelmente era professor-chefe da Academia Jixia (Knoblock, 1982-1983, p. 38 e 46). Ao final do capítulo, ele elabora uma crítica mais sintética e parecida com a que foi lida anteriormente, mas apresentou uma lista um pouco diferente de autores. Seu ponto principal, como no capítulo 21 mostrado acima, é a defesa de ser completo e não parcial, entendendo que somente o Caminho dos Reis Sábios proporcionaria essa amplitude de visão e de postura ética, ou seja, a percepção correta da ordem natural e da ordem social, somada à postura político ética confuciana.

 

“As dez mil coisas representam [apenas] uma parte do Caminho (Dao), uma coisa representa apenas uma parte das dez mil coisas. As pessoas tolas agem [baseadas apenas em] uma parte de uma coisa, mas elas próprias consideram conhecer [todo] o Caminho, [mas] não o conhecem. Shenzi [Shen Dao] expressava a perspectiva de manter [um governo], não a perspectiva de liderar; Laozi expressava a perspectiva do ceder, mas não da confiabilidade; Mozi expressava a perspectiva da uniformidade, mas não da diferenciação [social]; Songzi [Song Xing] expressava a perspectiva do ter pouco [desejo], mas não do ter muito [desejo]. Tendo a manutenção, mas sem a liderança, segue-se que as massas não terão saídas [para seus problemas]. Tendo o ceder, mas sem a confiabilidade, segue-se que o valoroso e o sem valor não são diferenciados. Tendo a uniformidade, mas sem a diferenciação, segue-se que as ordens do governo não serão aplicadas. Tendo poucos [desejos], mas sem aumentá-los, segue-se que as massas não se transformam” (Xunzi, cap. 17.17, 2006, tradução nossa).

 

Capítulo Contra os 12 filósofos, trechos 1 ao 9

Após ter estudado e ter sido professor-chefe na Academia Jixia, e já com vasta experiência como ministro em vários Estados, de volta a Zhao, sua terra natal, ele escreveu o capítulo que foi editado como o 6º do livro Xunzi, Contra os 12 filósofos (Fei Shier Zi), conforme Knoblock (1982-1983, p. 46). Mais agressivo, por um lado, mas também mais justo, por outro lado, nesse capítulo ele tece críticas e elogios aos seus oponentes. E, mais uma vez, defendeu o seu mestre, Confúcio, porém acrescentando o discípulo Zi Gong do mestre, já que o próprio Xun se colocava dentro da linhagem de interpretação de Zi Gong. Dado que os comentários aos doze filósofos (zi) constituem quase todo o capítulo, nesse caso, foi necessário mostrar uma síntese do capítulo, que apresento a seguir.

 

Conforme os trechos 1 ao 9 do capítulo Contra os 12 filósofos, Xun (2006) defende que as doutrinas traiçoeiras enganam o povo e os governantes. Em especial, ele crítica (e elogia) 12 filósofos em pares, formando 6 doutrinas criticadas: (1) Tuo Xiao e Wei Mou agem equivocadamente conforme suas tendências e emoções (que Xun entende serem naturalmente egoístas), mas explicam bem; (2) Chen Zhong [Tian Zhong] e Shi Qiu veem o desviante como o benéfico, explicam mal, mas exaltam a distinção entre pessoas (visto como positivo para Xun); (3) Mo Di (Mozi) e Song Xing desprezam a unificação do país e as distinções sociais e políticas, mas explicam de forma bem fundamentada; (4) Shen Dao e Tian Pian exaltam as leis, conhecem bons modelos de conduta, e explicam bem fundamentados, mas não se autocultivam moralmente; (5) Hui Shi e Deng Xi desconsideram os Reis Antigos e os Ritos, gostam de argumentações estranhas e precisas que não tem serventias práticas, mas explicam bem fundamentados; e, por fim, de modo raro na China antiga, Xun critica até mesmo membros da sua própria escola filosófica, a Escola dos Eruditos (“confucionismo”), da seguinte forma: (6) Zisi e Mêncio respeitam o sistema dos Reis Antigos, mas não os entendem, eles tem boas intenções, mas seguem a doutrina das cinco condutas adequadas, que, na verdade, não está de acordo com Confúcio e Zi Gong (não é explicado por qual motivo ele pensa que é uma doutrina em desacordo com o mestre); Por fim, ele tece os elogios finais a quem ele entende que são bons modelos de filósofos: Confúcio e Zi Gong, souberam sintetizar as melhores técnicas e estratégias através de princípios adequados, que seria confiar no confiável e duvidar do duvidoso, mas respeitar à todos (Knoblock, 1988).

 

Breve análise

Observamos nos três capítulos selecionados que o filósofo Xun crítica (e eventualmente elogia) de modo explícito outros filósofos do seu tempo – a antiguidade chinesa. Como pode ser notado no quadro abaixo, os filósofos mais citados e presentes nos três textos, foram: Mozi (Mo Di), Songzi (Song Xing), Shenzi (Shen Dao). Em seguida filósofos citados em pelo menos dois capítulos foram somente Confúcio e Huizi (Hui Shi). Os demais 17 nomes aparecem somente um dos textos analisados: Chen Zhong (Tian Zhong), Deng Xi, Laozi (Lao Tan), Mêncio, Shenzi [Shen Buhai], Shi Qiu, Tian Pian, Tuo Xiao, Zhuangzi [Zhuang Zhou], Zi Gong, Zisi e Wei Mou.

 

Quadro 1: Ocorrência de nomes de filósofos nos capítulos 6, 17 e 21 do Xunzi.

Fonte: elaborado pelo autor (2022).

 

Desses 22 nomes encontrados nesses três capítulos, vamos tecer somente algumas breve análises e comentários. Primeiro, é notável que somente alguns poucos nomes foram estudados e citados em pesquisas sobre filosofia chinesa em língua portuguesa, mesmo quando em traduções, como Confúcio, Zi Gong, Zisi, Mêncio (todos confucianos, até agora), Laozi, Zhuangzi, e, em menor alcance, Mozi, Huizi, Shen Dao e Shen Buhai – ver os vários manuais de “introdução” à filosofia chinesa em português (Kaltenmark, 1981; Granet, 1997; Cheng, 2008; Lay, 2009; Van Norden, 2018, Wu, 2018). Os demais filósofos são praticamente desconhecidos, no máximo mencionados, como aliás, por falta de espaço, faremos o mesmo por enquanto, deixando eles para um próximo texto.

 

Segundo, sobre a recorrência de autores. É uma surpresa que, mesmo havendo um capítulo específico somente em elogio a Confúcio na obra Xunzi (2006), ainda assim, nos capítulos analisados, seu grande inimigo intelectual o Mozi, aparece mais do que o próprio Confúcio. Songzi, alvo de críticas em capítulos inteiros, como o já citado capítulo 18, é mais citado do que Zi Gong, que é o segundo Erudito (Ru) mais respeitado por Xun, depois de Confúcio, claro. Shen Dao é citado nos três capítulos, mesmo em forma de crítica, o que de alguma forma evidência a já conhecida relação intensa de confronto e de empréstimo que Xun tem com a Escola das Leis (Legalismo).

 

Terceiro: Quem eram esses vários autores mencionados no Xunzi? Vamos nos concentrar nos mais mencionados nos capítulos investigados. O filósofo Mo Di (Mozi) viveu aproximadamente entre 479-372 AEC (Cheng, 2008, p. 101). Trata-se do primeiro forte opositor das ideias de Confúcio, o que faz Xun o ver como um adversário político e intelectual. Por outro lado, Xun usou de métodos e terminologias moístas, como a noção de distinção argumentativa (bian), e a técnica de discursos escritos mais lineares e explicativos (shuo). O filósofo Song (Songzi) é na verdade um compilado de escritos redigidos entre os séculos V e III AEC, que, em síntese, defendia que os humanos devem diminuir desejos para ter uma vida melhor e a ordem social almejada. Ele já foi aproximado tanto dos moístas (como Xun fez no capítulo Contra os doze filósofos) como dos daoístas, porém, na antiguidade entendiam que ele tinha uma escola própria (Theobald, 2011). Por sua vez, Shen Dao (350-275 AEC) foi um filósofo legalista que defendia a necessidade da existência das leis e a nossa obediência à elas como o melhor caminho político para a manutenção da sociedade e como melhor critério objetivo em medidas políticas, morais ou físicas (Emerson, 2013).

 

Os dois filósofos mencionados em dois dos três capítulos foram Confúcio e Huizi. Confúcio (551-479 AEC) é um dos autores mais estudados no Brasil dentre os filósofos chineses, junto com Laozi e Sunzi (Sousa, 2020), e talvez um dos mais conhecidos filósofos chineses em todo o mundo. Mesmo que ele apareça nos três capítulos menos do que em outros nomes, como já dito, Confúcio recebe um capítulo inteiro no livro Xunzi, e é um autor referencial em toda a obra do filósofo Xun. Confúcio é o principal agente da Escola dos Eruditos, uma tradição anterior a ele e que remete aos reis da antiguidade e aos seus servidores, sendo o sistematizador dessa tradição antiga que criou uma nova forma de ver e praticar essa mesma tradição para as gerações posteriores (Confúcio, 2012; Costa, 2021a). Huizi (Hui Shi, 380-305 AEC) teve um papel muito relevante na elaboração das primeiras filosofias da linguagem, com fins tanto teóricos, como éticos e até profissionais (Van Norden, 2018). Na dinastia Han (206 AEC-220EC), foi classificado dentro da “Escola dos Nomes”, um grupo heterogêneo de autores que se focavam em debates e paradoxos linguísticos na China antiga. Somente dez proposições dele sobreviveram, e estão presentes no capítulo 33 do Zhuangzi, traduzidas diretamente do chinês para o português por Souza (2016, p. 70-71) e por Tsai (2017, p. 132-133).

 

Sobre os demais filósofos, caberia uma análise mais aprofundada em outro momento, mas que já conta com algumas informações em Knoblock (1988). Por ora, basta apontar duas coisas: (1) a leitura do Xunzi confirma que os antigos filósofos chineses se liam e tinham discordâncias e concordâncias mútuas, como é o caso da postura que Xun tem em relação aos daoístas Laozi e Zhuangzi, ou mesmo com os legalistas como o Shen Buhai; (2) há alguns filósofos por ele mencionados em que são desconhecidos até mesmo o nome por boa parte de quem pesquisa filosofia chinesa em língua portuguesa, como o Chen Zhong, Deng Xi, Shi Qiu, Tian Pian, Tuo Xiao, Wei Mou, e isso evidência que muito ainda precisa ser investigado da história intelectual chinesa.

 

Em quarto lugar, em relação aos argumentos do próprio Xun, nos capítulos 17 e 21 ele escreveu dois parágrafos muito parecidos em termos de argumentação. Trata-se do seguinte: suas críticas são contra o viés parcial, até mesmo obsessivo e vicioso, que muitos filósofos têm com apenas um aspecto da realidade, enquanto, por outro lado, defende uma visão ampla que é capaz de observar os “grandes padrões” próprios de cada coisa existente. Isso seria possível justamente por saber que cada coisa tem seu próprio padrão, sua regularidade e estrutura, e, ao mesmo tempo, por seguir a postura ética dos Eruditos (“confucianos”) virtuosamente trabalhada de forma ritual e pelo modelo virtuoso dos Reis Sábios da antiguidade.

 

Já o capítulo 6 se difere em dois sentidos: (1) devido a ele citar vários filósofos, muitos até hoje pouco estudados, mostra-se uma fonte histórica única, como um indexador de filósofos da sua época; (2) além de apontar críticas, como fez antes, seu argumento é mais justo nesse capítulo, já que reconhece várias qualidades dos seus oponentes, ao passo que aponta que somente Confúcio e Zi Gong de fato são completos. Estruturalmente, sua premissa de que é necessário ser amplo e completo, e não parcial, continua. Mas foi adicionada a premissa de que é possível, sim, aprender com os filósofos incompletos e parciais, em alguma medida e em algum sentido. Mais exatamente, Xun nos sugere confiar no que é confiável e duvidar do que é duvidoso, numa postura de constante investigação. Ao contrário do que possa ser esperado, ele não propõe que não levemos em conta outros pensamentos, mas sim que os respeitemos. Como ele disse em seu capítulo 22: “É brilhante quem consegue ouvir a todas [elas], sem que seu semblante seja orgulhoso ou combativo. É generoso quem consegue abranger todas [elas], sem que sua aparência [demonstre] ataque às suas virtudes” (Xunzi, cap. 22, In: Costa e Li, 2021, p. 126). Apesar de escolher um projeto político-filosófico específico, o confucionismo, ele não é dogmático, mas escolhe o que é “confiável”, mesmo dentro da sua tradição. Isso é confirmado pela sua crítica a Mêncio, tanto nesse capítulo 6 como no seu capítulo 23.

 

Conclusão

Inicialmente, perguntei: de que forma a obra Xunzi nos possibilita a conhecer mais as ideias da antiguidade chinesa? Conclusivamente, a partir dessa breve análise dos três capítulos (6, 17 e 21), digo que o livro do filósofo Xun exige do leitor ou da leitora uma perspectiva abrangente da história da filosofia chinesa antiga, já que torna necessário conhecer melhor os outros autores citados. Até mesmo possíveis erros ou frases incompletas registradas por ele forçam com que leitores e leitoras busquem por entender o que está sendo criticado e por qual motivo – por exemplo, sua crítica ao Mêncio no capítulo 6 exige a leitura do seu capítulo 23 e até da própria obra Mêncio (ver Ho, 2006). Uma leitura atenta do Xunzi mostrará também toda uma rede das “cem escolas” de pensamento e dos vários filósofos que se articulam em alguns pontos e disputam ideias em outros aspectos. Dessa forma, a obra Xunzi nos convida e nos desafia a conhecer mais sobre a diversidade filosófica na China antiga, de forma que o próprio projeto xunziano seja melhor compreendido junto com seu contexto intelectual.

 

Referências biográficas

Matheus Oliva da Costa é pós-doutorando pelo Departamento de Filosofia da USP, é doutor e mestre em Ciência das religiões pela PUC-SP, é graduado em Filosofia pela UNINTER-PR e em Ciência das religiões pela UNIMONTES-MG. É professor de Filosofia e de História da China e da Índia antiga.

 

CHENG, Anne. História do pensamento chinês. Tradução Gentil Evelino Titton. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.

 

CONFÚCIO. Os Analectos. Tradução, comentários e notas de Giorgio Sinedino. São Paulo: Editora UNESP, 2012.

 

COSTA, Matheus Oliva da. Confucionismo – uma abordagem intercultural. Curitiba: Intersaberes, 2021a.

 

COSTA, Matheus Oliva da. Análise das Três Falácias e seus nove exemplos no capítulo Nomeação Correta do Filósofo Xun. In: Bueno, André (Org.). Mundos em Movimento: Extremo Oriente. Rio de Janeiro: Projeto Orientalismo/UERJ, 2021b, p. 197-205.

 

COSTA, Matheus Oliva da; LI, Peter. Nomeação correta (Zheng Ming 正名) – Xunzi. Prajna: Revista de Culturas Orientais, v. 2, n. 3, p. 113-139, 2021. Disponível em <https://revistaprajna.com/ojs3/index.php/prajna/article/view/35>. Acesso em: 17/09/2022.

 

EMERSON, John.  Shen Dao 慎到註譯 - Text, Translation, and Study. Second corrected edition.  Online:  Éditions Le Real, 2013.  Disponível em      <https://haquelebac.files.wordpress.com/2011/10/shen-dao-master-version21.pdf>. Acesso em: 24/06/2022.

 

GRANET, Marcel. O Pensamento Chinês. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

 

HO, Yeh Chia. O resgate do coração perdido: virtude e justiça na educação menciana. 211 f. Tese (Doutorado em Educação) – USP, São Paulo, 2006.

 

KALTENMARK, Max. A Filosofia Chinesa. Lisboa: Edições 70, 1981.

 

KNOBLOCK, John H. The Chronology of Xunzi’s Works. In: Early China, v. 8, 29-52 1982–83. Disponível em: <http://www.jstor.org/stable/23351544>. Acesso em: 26/08/2022.

 

KNOBLOCK, John (ed.). Xunzi: A translation and study of the complete works (v. 1). Stanford: Stanford University Press, 1988.

 

LAY, Karyn L. Introdução à filosofia chinesa: Confucionismo, Moismo, Daoismo, e Legalismo. São Paulo: Madras, 2008.

 

SOUSA, J. B. R. de. A Filosofia Chinesa Publicada no Brasil nos Séculos XX e XXI. Zi Yue, [S. l.], v. 1, n. 1, p. 24-41, 2020. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/ziyue/article/view/157864. Acesso em: 02 set. 2022.

 

SOUZA, Julia G. V. Zhuangzi: uma tradução comentada do segundo capítulo. 2016. 115 f. Dissertação (Mestrado em Filosofia). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. USP, São Paulo, 2016.

 

TSAI, Plínio M. Zhuangzi e a desconstrução da substancialidade nos paradoxos lógicos de Huizi. 2017.  Dissertação (Mestrado em Filosofia). Londrina: Universidade Estadual de Londrina, 2017.

 

THEOBALD, Ulrich. Song-Yin xuepai 宋尹學派, The School of Song Xing and Yin Wen. Chinaknowledge.de, 2011. Disponível em: <http://www.chinaknowledge.de/Literature/Diverse/songyinpai.html>. Acesso em: 13, set. 2021.

 

VAN NORDEN, Bryan W. Introdução à Filosofia Chinesa Clássica. Tradução Gentil Avelino Titton. Petrópolis, RJ: Vozes, 2018.

 

XUNZI. Xunzi. In: STURGEON, Donald. Chinese Text Project. Online: 2006. Disponível em <https://ctext.org/xunzi>. Acesso em: 02/09/2022.

 

WU, Chun. Filosofia chinesa. Rio de Janeiro: Batel, Go East Brasil, 2018.


9 comentários:

  1. Caro Matheus, mais um texto rico sobre Xunzi! interessante pensar que ao se posicionar de forma independente, criticando mesmo seus colegas da escola erudita, ele estava sendo mais confucionista do que nunca, rs e mesmo assim, não será essa a abertura que permitirá que ele fosse 'sequestrado' por outras agendas, como foi o caso claro dos legistas, como Hanfei? Podemos supor então que, de alguma forma, o legalismo continha um 'confucionismo' pessimista? Grato! =) André Bueno

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    1. Sobre a outra pergunta: "Podemos supor então que, de alguma forma, o legalismo continha um 'confucionismo' pessimista?"
      Realmente os legalistas chineses antigos, cada um ao seu modo, eram bastante contra as propostas políticas confucianas, e em alguns textos eram bem explícitos quanto a isso, como sabes. Se o que chama de "pessimismo" é a visão que tinham do ser humano como um ser egoísta (o que significava "mau" para a coletividade, muitas vezes) guiado pelas vantagens e que rejeita as desvantagens para si, certamente Hanfei e Lisi foram influenciados pelo Xunzi nesse ponto. Contudo, é bom lembrar que Xun, como defensor do programa político e ético de Confúcio defendia a perfectibilidade humana, e era bem enfático quanto a necessidade e a possibilidade real de todas as pessoas se tornarem moralmente melhores. Yao, Shun, Yu, Wen, Wu, Duque de Zhou, Confúcio e Zi Gong são frequentemente citados no Xunzi como exemplos de quem realizou na prática essa perfectibilidade ética. Nessa segunda parte (de que podemos nos transformar para pessoas melhores até o grau de sábios), seus alunos legalistas não o seguiram, rejeitando essa possibilidade. Trata-se, ao meu ver, de dois modelos teóricos de ética incomensuráveis: a ética das virtudes confuciana, por um lado, e o consequencialismo legalista, de outro lado. Mas paro por aqui, pra não virar outro texto, rsrs.
      Abraços

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    2. Obrigado, André. =D
      "não será essa a abertura que permitirá que ele fosse 'sequestrado' por outras agendas, como foi o caso claro dos legistas, como Hanfei?"
      Sim, os elogios que ele fez para alguns legalistas foram usados contra ele, especialmente a partir do final da dinastia Tang, quando a interpretação menciana na versão de Han Yu começa a ganhar força novamente dentro da Escola dos Eruditos. Han Yu chega a fazer comentários no estilo do Xunzi, mas contra o Xunzi, o que foi bastante irônico, rsrs.

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  2. Obrigado, André. =D
    "não será essa a abertura que permitirá que ele fosse 'sequestrado' por outras agendas, como foi o caso claro dos legistas, como Hanfei?"
    Sim, os elogios que ele fez para alguns legalistas foram usados contra ele, especialmente a partir do final da dinastia Tang, quando a interpretação menciana na versão de Han Yu começa a ganhar força novamente dentro da Escola dos Eruditos. Han Yu chega a fazer comentários no estilo do Xunzi, mas contra o Xunzi, o que foi bastante irônico, rsrs.

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  3. Vittoria Sampaio Neto Belizário6 de outubro de 2022 às 01:43

    Xunzi chega a citar e critica Han Fei ou apenas cita um pensador legista?

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    1. [postagem autorizada em função de problemas técnicos]
      Xunzi foi professor do Hanfei (e outros filósofos) na Academia Jixia. Como Xunzi defendia um forte respeito aos professores, e uma concepção confuciana de hierarquia social, ele somente citava, direto ou indiretamente, autores anteriores ou contemporâneos dele, e não alunos. Por isso, ele não citou o Hanfei, e o Hanfei, cronologicamente, produziu também depois do momento mais ativo do Xunzi, o que pode ser que ele nem mesmo tenha visto os escrito do aluno.
      Mas o Xunzi, nos 3 capítulos analisados, cita os legalistas Shen Dao, o Shen Buhai e o Tian Pian. Em outros capítulos a menções diretas e indiretas a outros legalistas também, ou a ideias compartilhadas pelos legalistas presentes em outros autores, como ideias da obra Guanzi.
      Obrigado pela pergunta! Continuo à disposição.

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  4. Primeiramente, gostaria de parabenizar o excelente texto! Em segundo, como mencionado no artigo, o estudo de alguns filósofos chineses desse período é de difícil acesso no Brasil, seja pela dificuldade em encontrar traduções adequadas, ou até mesmo pela completa falta de acesso aos materiais escritos por esses filósofos. Pensando nisso, acha que o estudo de Xianzi pode ser um ponto de partida para conhecimento de novos pensadores e pensamentos chineses?

    Desde já, grata pela atenção

    Crislli Vieira Alves Bezerra

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